Às turras com os eufemismos

O eufemismo (do grego: euphemismós, emprego de palavra favorável) não é um arquétipo português, embora, instalados nessa generalização de que somos “um país de brandos costumes”, essa figura de retórica se tenha tornado, mais do que familiar, um vício do nosso quotidiano de atitudes, declarações, gestos, proclamações…

Esta linguagem eufemística estende-se, praticamente, a toda a comunicação nas mais variadas áreas. Até nas dicotomias. Nos maniqueísmos. Tantas vezes para disfarçar disfemias, no seu significado inicial grego: palavras de mau agoiro.

eufemismo

Ao fim de mais de 20 anos, resgatei um livro que procurei anos a fio sem nunca ter imaginado onde se encontrava, um sótão, onde, em determinada idade, foram lançadas à pressa algumas coisas que pesavam em mais uma mudança radical na minha vida, mudança de relação, de cidade, do tamanho da casa, de hábitos, até de país por cerca de um ano.

A limpeza do referido sótão pelo actual locatário permitiu o meu reencontro com o meu espólio de velhas histórias, fábulas, tratados, romances, pedaços de prosa que escrevi noutra era, quiçá numa outra encarnação das minhas ficções.

O livro a que aludo, de inícios de 1978, que, já em 16 de Janeiro daquele ano, ia na segunda edição, foi um bestseller.

No seu prefácio, Eduardo Lourenço, o académico convidado para nos introduzir na obra, classifica o regime político imediatamente anterior ao 25 de Abril como os “40 anos de regime antiliberal e um espaço imperial em vias de desintegração”. Querem, senhores, melhor e mais descomprometido eufemismo para o regime deposto pelos “capitães de Abril”? Claro que outra afirmação do pensador português é menos eufemística: “aspiração profunda do Povo português, fruto de um regime totalitário, autista, sufocante, bloqueado interna e externamente”.

Se o mote fosse este último parágrafo, não deixaria de ser paradigmático o paralelismo entre o que existia em finais de 1977 e o momento presente: “ (A três anos de distância), em maré baixa duma boa parte das esperanças de renovação profunda que milhões de portugueses puseram na Revolução de Abril”. Em 34 / 35 anos, se não regressámos a um regime totalitário, vivemos, no entanto, sob contornos autistas, sufocantes, bloqueados interna e externamente.

Não, não aprendemos nem com os erros nem com a história!

Mas, voltando aos eufemismos, este estranho atavismo (do latim atavu, pai do trisavô) que não nos deixa – a não ser por raros momentos de lucidez – escolher entre preto e branco, tout court, tem sempre de ser escuro / claro (maxime, escurinho / clarinho), para já não dizer cinzento, outro dos adjectivos com que muitos classificavam a ditadura salazarista. Ela que foi negra; quando muito, a “primavera marcelista” é que terá sido cinzenta…

Foi nesta estranhíssima propensão para as meias tintas que surgiu, há dias, a irrelevante escritonovela a que a pigmentação do Abebe Selassié, o etíope mais odiado pelas lusas gentes, deu cor e apimentou alguns sítios cibernéticos depois de o secretário-geral da CGTP ter chamado escurinho ao líder da troika que governa Portugal. Novela alimentada por João Soares, sempre disposto a entrar nas lides dialécticas nem que seja apenas para não passar despercebido, ou em nome da titularidade da herança do clã familiar dos epónimos Soares (noblesse oblige, ora pois).

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Daí para cá, sucedem-se os eufemismos nas declarações políticas, económicas. Os “protocandidatos” às autarquias multiplicam-se nesse género de preferência para a sua comunicação pessoal e institucional, a forma como se fala de alguns candidatos não foge também a essa fórmula. Exemplar, neste quadro, o que disse Manuel Pizarro sobre Rui Moreira; mas, sobretudo, o que quis dizer.

Incapazes de “apanhar o boi pelos cornos” ou de “pôr os pontos nos ii”, alguns políticos passam de candidatos a uma autarquia a candidatos nacionais a outro lugar, para, horas depois, voltarem á primeira forma (se…, há sempre um “se”), com a facilidade com que Pimenta Machado dizia há anos que o “que agora é verdade, amanhã é mentira”, numa lógica, hoje pacífica, de que a política há muito tempo que deixou de ser a ciência de um bom governo, para se tornar, ao invés, a arte da conquista e da preservação do poder a qualquer preço. Algo como a frase atribuída a Maquiavel (embora lídimos pensadores afirmem que o teórico de política italiano nunca utilizou a expressão) de que “os fins justificam os meios”.

Ou como escrevia Ralph Waldo Emerson, em pleno século XIX, “Uma seita ou um partido político é apenas um eufemismo elegante para poupar um homem ao vexame de pensar”.

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PS. O livro cujo prefácio e prefaciador cito, da autoria de Otelo Saraiva de Carvalho, chama-se “Alvorada em Abril”.

Comments

  1. Maquiavel says:

    E está tudo dito!

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