Mulher e estendal

Como outros passeiam os cães de companhia, ela traz à rua o seu estendal. É preciso que vos diga que não é capricho nem bizarria, não há nela nenhuma excentricidade. É que há casas que são tão pequenas que nem o sol lá consegue entrar. E secar a roupa nesta cidade é um problema de que não se fala. Há casas baixinhas, sombrias, infiltrações de água, paredes corroídas, azulejos que se desprendem das paredes, senhorios que vivem longe e não assistem à lenta agonia das casas que arrendaram, há miséria, miséria, tantas formas de contar a miséria nesta cidade. Até a água a conta, no seu percurso sinuoso pelas paredes de casa, a tinta a estalar em crateras amareladas, a mancha negra a alastrar no tecto, “qualquer dia caem-nos os vizinhos em cima”.

Num cantinho da sala ficava o estendal e era preciso afastá-lo para passar. E a roupa não secava. Lavava-se ao sábado e os dias passavam, a roupa ganhava cheiro a humidade, a janelas fechadas, à comida que se cozinhou, e não havia forma de ficar seca. E a roupa húmida no corpo, não há pior, esse frio que vai atravessando a pele, fica-se gelada até à alma. Então lembrou-se de ir ela atrás do sol.

Pegou no estendal, uma armação leve, duas patas para apoiar no chão, dois braços que se abrem e fecham, pegou nele com a roupa ainda estendida, empurrou-o para fora de casa, arrastou-o a ranger pela tijoleira do chão, pelo empedrado da rua, e foi sentar-se com ele no largo ali ao pé. Ao lado estão os edifícios de escritórios, gente que passa com pressa, a gesticular para o fio que lhe pende do ouvido, e que olha para ela mas pouco. Há muita vida no largo: um jornal, uma estação de rádio, barbearias, quiosques, os restaurantes que ainda sobram, as luzes dos semáforos, pão quente a sair do forno, o baque do manípulo da máquina quando se sacode o pó de café.

E agora há um estendal, árvore rara entre bancos de cimento. E a sua guardadora, que apascenta camisas de noite, camisolas, cuecas, meias, uma saia comprida. Mulher e estendal. Juntos desafiam as regras da cidade. 

Comments

  1. João Paz says:

    Excelente artigo Carla Romualdo, é urgente mostrar a miséria que nos provocam da mesma forma que é urgente lutar contra ela. Se for desta forma cuidada e elaborada tanto melhor. Obrigado!

  2. Orvalho says:

    Se há quem faça da rua o seu quarto de dormir …

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