Das Gerações à Rasca, às manifestações Que se Lixe a Troika*

Estive dois dias a “mastigar” o que foram as manifestações simultâneas do passado sábado.

Pouco tempo, eu sei, para luisproduzir o que quer que seja de uma reflexão aprofundada. Mas mesmo assim, gostaria de partilhar e, para quem o quiser fazer(coisa nada fácil de fazer no nosso mundo-chiclete), colocar a debate, algumas ideias.
Penso que a “Geração à Rasca”, há pouco menos de 2 anos, que estudei em profundidade graças à bem-aventurada aventura académica, marca uma espécie de início visível de um longo processo de re-tomada do espaço público simbólico por um “cidadão anónimo” novo, que já não coloca em campos antagónicos a “cidadania” e o “anonimato”, o que pode significar que estaremos num processo reformulador do próprio conceito de “cidadão”. Trata-se, pois, da possível emergência de algo cujas consequências políticas ainda não temos suficiente informação para perceber.
Digo que se trata da re-tomada, ou re-ocupação do “espaço público simbólico” porque, nas últimas décadas, o capitalismo (chamemos-lhe “democracia de mercado” para sermos, vá, simpáticos) desvitalizou, de facto, o espaço público como “espaço político”. Julgo que é da sua tentativa de revitalização que tratam estas manifestações, o 12 de Março de 2011, o 15 de Setembro de 2012, o 2 de Março de 2013.
Para já, estaremos num período de diagnóstico a que poderíamos chamar “a rebelião dos consumidores”. 
Se há, de facto, condição que todos passámos a partilhar na “democracia de mercado”, foi a condição comum de “consumidores”. O “consumidor”, sujeito que se sujeita, sujeito em necessidade, venceu até o “cidadão” moderno no campo da cidadania. O que é o “eleitor” senão um sujeito que julga dispor de um direito de escolha em liberdade, sabendo-se que a sua escolha se faz não porque leu atentamente todos os programas e sobre eles julgou, mas porque passou a escolher entre caras, vozes, falinhas mais ou menos mansas, enfim, se foi tornando um mero consumidor da imagem mediatizada forçosamente reduzida ao “soundbite” dos políticos e programas que era suposto ler e conhecer? Até mesmo nos dispositivos mais simples que regulam a relação normativa e legal do cidadão com o Estado isto se passa: veja-se como conseguimos criar a “loja do cidadão”, atente-se, “loja”/”cidadão” (!) à qual vamos alegremente porque sabemos que ali todo o Estado se dispõe aos nossos olhos como a vitrine ou a prateleira do supermercado!
Foi, portanto, desvitalizado politicamente o espaço que era suposto ser político.
Acontece, porém, que o “consumidor” só existe enquanto puder sê-lo, isto é, o “consumidor livre” que julgávamos ser, e no qual julgávamos encerrar toda a nossa “cidadania”, não existe. Desapossados, pela máquina financeira, da nossa liberdade de escolha, o que resta?
Daí que, o que para mim, vemos nas ruas, desde a “Geração à Rasca” é, antes de mais, uma “rebelião de consumidores” que se viram desapossados da sua suposta liberdade. Trata-se de um processo, mas com imensas cambiantes e desvios que não são fáceis de perceber. Ou seja, não é “o mesmo” o que temos visto, em manifestações sucessivas, nos grandes centros simbólicos do espaço público do país.
Quem esteve, como eu, nas três grandes manifestações, reteve delas diferentes e poderosas imagens.
Aquelas que mostram o que foi, de facto, a diferença entre esta manifestação e as anteriores são, para mim, as que mostram o rosto, a expressão, o olhar dos mais velhos.
A “Geração à Rasca” mobilizou a sociedade de modo transversal, mas contou essencialmente com as (des)esperanças dos mais jovens. Foi, por isso, colorida e, em certa medida, ainda a expressão de sonhos e projectos.
O 15 de Setembro mobilizou a sociedade de modo transversal, mas fez-se essencialmente a partir da nossa (des)esperança como “consumidores”. É aquela que mais denuncia a “rebelião” que tento descrever. Por isso, foi essencialmente uma manifestação em que se exprimiu a chamada “classe média”, aqueles que trabalham mas que viram os seus rendimentos cair abruptamente ou em vias disso, constatando, para mais, no simbolismo da “TSU”, o verdadeiro programa de desapossamento da “liberdade de escolha” que estava em curso: o programa de empobrecimento. Contudo, também conservou alguma cor anterior. Porque os “consumidores” ainda acreditam na reversão, ainda não perceberam o verdadeiro peso do desapossamento.
O 2 de Março mobilizou igualmente de modo transversal a sociedade, mas fê-lo a partir da própria (des)esperança do “cidadão”. Constatada a perda da “liberdade de escolha”, já só resta ao “cidadão” o eufemismo do próprio regime, dito democrático, que lhe permite sair à rua para se manifestar, não tendo mais nada que lhe possa prometer. O “cidadão eufemístico”, cidadão que nada pode, já se situa, por isso, na ponta final do diagnóstico.
Talvez esta tenha sido, por isso, a mais triste de todas, a mais grave também, a mais pesada, e aquela em que nos detivemos mais no rosto dos velhos, dos idosos e de todos os outros que se viram, subitamente, transformados em velhos, porque começam a ser os que ficam, os que restam, porque os novos estão a partir.
A isto, o que se seguirá?

—–

*texto retirado do Facebook de Luís Miguel Loureiro

Comments

  1. Maquiavel says:

    Um grande texto!
    Mas é isso mesmo: o pessoal vai-se acomodando enquanto pensa que faz parte da classe média, ou que pelo menos pode um dia lá chegar. Quando essas ilusöes se desvanecem a mostarda chega ao nariz, que ninguém gosta de ser pobre!

Discover more from Aventar

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading