Croniquetas de Maputo: o mercado de Xipamanine

A última destas croniquetas,
dedicada à Carla Romualdo
que me “encomendou” umas crónicas
 
“Mas ele aprendera a espalhar na sua alma o remédio do há-de vir. E  consolava-se:
-A farinha há-de-me visitar, eu sei”
Mia Couto em Vozes Anoitecidas
Mafura

Mafura

À medida que nos aproximamos de Xipamanine começamos a ter um prenúncio do que vamos encontrar. Filas de jipes, chapas, algumas carroças, todos procurando circular ao mesmo tempo, procurando vantagem no trânsito, enfiando-se por espaços livres minúsculos, travagens, buzinadelas, saudações de carro para carro, pedaços de conversas desgarradas, impropérios a transeuntes, algumas altercações e quezílias entre condutores que, na ânsia de passar primeiro, engarrafam o tráfego e obrigam a manobras de delicada geometria. O povo moçambicano, cortês, simpático e, sobretudo, muito paciente é pouco dado ao insulto e a palavras fortes.

-Seu gordo, careca de merda – disparado pelo condutor do chapa, mereceu um coro de protestos da parte dos passageiros. – Não é preciso insultar, havemos de chegar.

Sim, havemos de chegar, há-de-se resolver, depois de tornearmos um chapa atravessado na estrada, de ultrapassarmos um rebanho de cabritinhos a caminho do mercado, de dizermos que não estamos interessados aos cinquenta vendedores que nos oferecem algo pela janela, castanha de caju, óculos de sol, telemóveis de última geração, havemos de chegar.
Havemos de chegar, o momento da chegada há-de vir se aquele carro arrancar, se o chapa da frente não deixar passar o jipe que vem em sentido contrário, se o gordo-careca-de-merda deixar de bloquear o trânsito, havemos de chegar, porque já começamos a ver vendedores nos passeios, uns após outros, começamos a ver fruta sul-africana importada, uvas, peras, ameixas, começamos a ver montinhos de mangas empilhadas, gente com cachos de bananas, anonas ao lado maracujás, maracujás encostados a maphilwas, maphilwas junto a pirâmides de mafura, uma das frutas mais belas que já vi, orgulhosas da sua cor-de-laranja pontilhadas, cada uma, por sua unha negra.

Eu hei-de comprar mafuras, hei-de pô-las durante vinte minutos em água morna, hei-de pelá-las e separar a polpa do caroço, hei-de fazer um creme branco parecido com iogurte, hei-de adoçar com duas colheres de mel, hei-de pensar que um cálice de vinho do porto (onde é que ele está?) haveria de tornar esta sobremesa simples verdadeiramente sumptuosa.

Mas agora a confusão aumenta, há cada vez mais cores, mais cheiros, mais pessoas, a rua alarga-se, arrumadores de carros tentam roubar clientes uns aos outros, surgem as primeiras lojas de capulanas, verdadeiros tesouros de desenhos e padrões, já não há espaço para novos vendedores nos passeios, passa-se nos intervalos que sobram.

O mercado informal de Xipamanine extravasou fronteiras há muito tempo, espalhou-se pelas ruas circundantes, milhares de pessoas a vender e a comprar, aqui tudo se vende, tudo se encontra, tudo se encomenda.

Vir a Xipamanine, penetrar no seu coração, é uma experiência inesquecível,  o mercado funciona quase 24 horas por dia, há pessoas que nunca daqui saem, dormem nas próprias bancas para guardar os haveres, não chegam a desmontar sequer.

Trata-se de um labirinto de ruelas enlameadas, com lixo acumulado em todo o lado e várias zonas de produtos, lojas que são apenas barracas de pau a pique, artesanato, animais vivos, animais mortos – na zona “talho” o cheiro é quase insuportável, a sangue, excrementos, vísceras, os animais são desmanchados e retalhados ali mesmo, vendedores racham cabeças de vaca ao meio com machados mal afiados, salpica sangue e pedaços de carne, atravessa-se aquilo e sai-se com nódoas na roupa – zonas de produtos de beleza e limpeza, pintadores ambulantes de unhas carregados de vernizes de todas as cores, produtos naturais, remédios tradicionais, coisas de feitiçaria, unhas de leão, pelo de macaco, dentes de tubarão, tripas secas disto e daquilo, ervas, chás, conchas, corais enegrecidos e maltratados, pós e corantes naturais, peixe e camarão seco, peixe “fresco” saído há muitos dias do mar, lojas de cabelos postiços, madeixas, extensões, barbearias com apenas um banco, um espelho, um pano e uma tesoura, enfim, o que se quiser. É um carrocel de sensações, do fascínio ao nojo, que vale absolutamente a visita.

Em algumas zonas vende-se mobílias, noutras objectos de madeira, colheres de pau, peneiras, bancos para descascar cocos e alcançar o seu leite, indispensável em quase toda a gastronomia moçambicana. Comerciantes indianos, envergando túnicas até aos pés vendem caris, especiarias e artesanato a preços feitos para negociar, podemos chegar aos cinquenta por cento de desconto, emigrantes vindos da Tanzânia, do Malawi, do Zimbabué procuram impingir-nos máscaras de madeira artificialmente envelhecidas, garantem-nos que têm mais de cinquenta anos, desafiam-nos a propor um preço, rapazinhos imberbes apresentam-se como artistas plásticos e oferecem-nos panos de batik, proliferam lojas de som, com enormes colunas debitando canções, tecnologia chinesa acabada de inventar lado a lado com produtos típicos ancestrais.

Xipamanine não é apenas uma aventura: é uma aventura dentro de uma aventura, dentro de outra aventura, um local onde Rimbaud se perderia, onde Cesário Verde confundiria os sentidos, onde um Corto Maltese em carne e osso faria um negócio obscuro com uma mulher bonita, de boca grossa e capulana com motivos de elefantes. É um lugar para beber sura falsificada, num copo sujo, e pedir outra. É um lugar para se voltar com tempo, com todo o tempo, porque um dia hei-de voltar, há-de vir o dia em que eu hei-de aqui vir outra vez, hei-de chegar de novo e penetrar no coração assombroso de Xipamanine, o mercado mais fascinante e surpreendente de Maputo.

 

http://youtu.be/PSziegqIuHw

Comments

  1. Carla Romualdo says:

    Tenho lido todas as tuas crónicas com a maior atenção e a todas fiz circular por amigos e conhecidos saudosos dessas paragens. Grande sorte a minha que me dediques logo o meu favorito (já sabias!), este retrato fabuloso do mercado e do tortuoso caminho para lá chegar. Eu quase que me atrevo a dizer que já estive em Xipamanine, Pedro, só por ter lido este teu texto…
    Um beijinho e o meu agradecimento, pelas crónicas e pela dedicatória.

    • Não tens que agradecer, Carla, pelo contrário, se não fosse a tua “encomenda” talvez eu não as tivesse escrito.

  2. palavrossavrvs says:

    Esta escrita é a minha escrita. Pude viajar e vibrar nela. Bravo.

  3. António Fernando Nabais says:

    Espectacular: Cesário em África.

  4. Aos comentadores anteriores:
    Vindo de quem vem, confesso que me sinto lisonjeado.

  5. Se eu fosse capaz de descrever a energia integral do “Roque Santeiro”, a que um dos grandes da literatura angolana chamou “o coração financeiro de Luanda”, gostaria que fosse assim. Não teria uma Carla a quem dedicar, ela própria capaz dessas feitiçarias com as palavras, mas releria o que escrevi e mataria saudades.
    Saudades de África, de 1974, 2007, 2009, essa África tão única em cada diversidade e tão igual. Até o óleo de palma me sabe a leite de coco.

    • Obrigado, Armindo. Temos que partilhar memórias…

      • Augusto Fernandes says:

        Xipamanine não é só um mercado. É o coração de um povo que transborda simpatia e riqueza cultural jamais descrita em poemas de amor a alguém que nos quer bem. Beber uma 2M num bar de zinco no centro do mercado, de manhã, onde muitos tentavam advinhar de onde tinha vindo a minha pele branca (Sueco? Sul africano? Jugoslavo? Tudo menos Angola), foi um dos momentos mais quentes e deliciosos, qual mafura já degostada em vinho do Porto, que vivi nesse belo país, Moçambique.

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