A CPLP e Maio. E o Keynes?

Ao ler estas informações acerca de «colóquio subordinado ao tema “O Direito Constitucional de Língua Portuguesa”» (tendo o programa chegado ao meu conhecimento através de publicação de Ivo Miguel Barroso de partilha de Jorge Bacelar Gouveia), deparo com o seguinte cenário catastrófico: uma *receção, oito *perspetiva, um *diretor, uma *subdiretora, dois *objetivo uma *atividade, uma *atuação, uma *ação, um *retroprojetor e, para rematar, dois Maio (exactamente) com maiúscula.

Sabemos, através de nota informativa, que o colóquio é organizado pela CPLP. Tendo o programa sido divulgado por Bacelar Gouveia e participando o próprio activamente no colóquio, convinha alguma cautela nas partilhas em redes sociais e que a organização fosse alertada quer para a extraordinária redacção da base XIX, 1.º, b), quer para o início desta reflexão de Bacelar Gouveia acerca do AO90: «Quem se der ao trabalho de ler esse tratado internacional logo perceberá que se trata de um conjunto de normas sem sanção, aquilo que os romanos designavam por lex imperfecta». Efectivamente, convém alguém “dar-se ao trabalho de ler esse tratado internacional”. A começar pela própria CPLP.

No caso de a CPLP decidir, duma vez por todas, ignorar o AO90, o processo, garanto, é reversível e a solução, como todas as coisas boas da vida, é bastante simples: mantêm-se os dois Maio e, quanto ao resto, não demora muito (uma recepção, oito perspectiva, um director, uma subdirectora, dois objectivo uma actividade, uma actuação, uma acção e um retroprojector).

A inaptidão da CPLP para lidar com o AO90 é bem conhecida. Embora concorde com Margarita Correia que «[q]uaisquer conclusões terão que ser tiradas a longo prazo, depois de análise cuidada dos dados observáveis por um período razoável de tempo», creio que mais de um ano será tempo razoável para se perceber que na CPLP ainda não se compreendeu a razão que se esconde por detrás da base XIX, 1.º, b). Será porque, «no que aos nomes dos meses com maiúsculas iniciais diz respeito, a tradição é perceptível e está enraizada nas mais venturosas empresas de sistematização da ortografia portuguesa (Madureira Feijó), no estabelecimento de directrizes para uma norma ortográfica (Bluteau), na fundação da lexicografia moderna do português (Morais Silva) e nos preceitos ortográficos de 1911 e 1945»? É uma possibilidade.

Aliás, passado mais de um ano, ainda estamos todos à espera do “diagnóstico relativo aos constrangimentos e estrangulamentos na aplicação” do AO90. Quanto tempo é um período razoável de tempo? Haverá um período razoável de tempo quando o tempo urge? Poderemos dar-nos ao luxo de esperar, durante um período razoável de tempo, quando a dignidade de instituições e de publicações como o Diário da República está em causa? Por que motivo não houve essa (legítima e compreensível) preocupação com o período razoável de tempo antes da aventura AO90? Lembremo-nos dos pareceres. Agora, perante o desastre, em vez de se suspender o processo, continua-se? Estaremos à espera de quê? Não podemos dar-nos ao luxo de remeter a aplicação do AO90 para o catálogo dos estudos diacrónicos. O problema tem de ser resolvido. Imediatamente. Ontem, já era tarde. Dar tempo ao tempo? E o Keynes?

Post scriptum: É curiosa a menção ao Plano de Ação de Brasília para a Promoção, a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa. Recordo aquilo que João Roque Dias, António Emiliano, eu próprio e Maria do Carmo Vieira escrevemos, no jornal Público, em Carta Aberta  ao Primeiro-Ministro, ao Ministro dos Negócios Estrangeiros e ao Ministro da Educação, publicada em 25 de Junho de 2011:

Da VI Reunião Extraordinária do Conselho de Ministros da CPLP de 2010 resultou a Resolução sobre o Plano de Ação de Brasília para a Promoção, a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa, com a seguinte recomendação (III.5): “Nos pontos em que o Acordo admite grafias facultativas, é recomendável que a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição ortográfica vigente em cada Estado Membro, a qual deve ser reconhecida e considerada válida em todos os sistemas educativos.” Esta recomendação destitui, por si só, o AO de qualquer fundamento: como se pode defender simultaneamente um acordo que pretende unificar as tradições ortográficas vigentes nos Estados signatários através de facultatividades gráficas, e, ao mesmo tempo, propor-se que o problema das grafias facultativas se resolva pelo reconhecimento oficial de tradições ortográficas divergentes, logo, não unificadas?

Actualização (4/5/2013): Será que o professor Krugman lê o Aventar?

Comments

  1. António Fernando Nabais says:

    Arrasador.

  2. palavrossavrvs says:

    Brilhante!

  3. adelinoferreira says:

    Ó compadre roubaram-me o porco!
    Diga sempre assim.
    Mas ao compadre,roubaram-me o porco!
    Diga sempre assim!
    …………

  4. Demolidor e indiscutível

  5. Valadas, os nossos melhores escritores grafaram os meses e as estações do ano com minúsculas. De resto, diferenciar verão de verão é tão fácil/difícil como diferenciar colher de colher.
    Aliás, pela sua lógica, o AO vem resolver um problema: a partir de agora os portugueses conseguem finalmente saber quando Janeiro é apelido ou mês.

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