Morreu o café mais feio do Porto

Nunca entenderei como pôde estar aberto tantos anos, sendo, como era, o café mais feio da cidade, mas certo é que durou muito e sempre preservando as características que o tornavam distintamente horrendo e seguramente o mais feio da cidade. Não sei se mais alguém o tratava por esse título e adivinho que estão por esta altura a pensar que semelhante afirmação é muito subjectiva. Claro que é. Mas se o vissem concordariam comigo. E espero que sim, que tenham chegado a vê-lo, porque agora já não terão essa sorte.

Não vou dizer, claro está, que café era, porque até os cafés têm pai e mãe. Quero dizer, gente que gosta deles e os mantém, gente que se calhar fez daquele lugar a sua vida toda, e teve orgulho na luz pardacenta, nas paredes manchadas, nos pires esbotenados e até no zumbido atordoador da máquina para electrocutar mosquitos. Onde passamos as nossas horas faz-se casa antes do diabo chegar a esfregar o olho. E já sabemos que se pode amar o feio e encontrar-lhe uma nova graça a cada dia.

E apesar de não me passar pela cabeça voltar a entrar em tal sítio, admito que tive pena de vê-lo fechado. Porque há também uma certa graça nos sítios sem graça, há também encanto nesses lugares de que é preciso um grande esforço para gostar. Não há café, por mais feio, que não tenha um cliente que o fez seu. A mais diminuta espelunca tem alguém da casa, a quem tratam pelo nome e servem sem que seja necessário pedir, e que ocupa a cadeira de sempre como se sentasse na poltrona lá de casa, a que todos temos, com a cova moldada pelo nosso rabo.

Há uns anos, num lugarejo perdido na estrada, num lugar cujo nome não quero lembrar, ouvi um cliente ser saudado pelo dono do café, enquanto lhe pousava ao balcão o copo que ele não tinha precisado de pedir:

– Então, como estão os pés da sua senhora?

Aquilo pareceu-me o atendimento mais extraordinariamente personalizado de sempre. Já não apenas saber o nome do cliente, ou da sua família, os seus gostos pessoais, mas a conhecer a particular condição dos pés da esposa ausente.

E o outro levou o copito de tinto à boca e mesmo antes de encostá-lo avidamente aos lábios, respondeu que iam andando, obrigadinho, deixando-me com uma vontade louca de perguntar qual era a condição particular desses pés que iam fazendo aquilo que fazem todos e, ainda assim, eram motivo de preocupação para o dono do café.

Fechou portas, então, o café mais feio do Porto, espaço sinistro onde um dia me refugiei do calor de um Julho como o que vai correndo, e onde me mantive mais tempo do que poderia prever, a desfrutar do horror de tudo quanto via. Era, já então, um café antigo e ainda durou muitos anos, resistiu a tudo menos àquilo que estamos a atravessar e a que se convencionou chamar crise. Podia ter aproveitado para se auto-intitular “café mais feio da cidade” e com isso tentar um golpe de asa de marketing, mas se calhar a quem o geria nem passava pela cabeça que o espaço pudesse ostentar esse título.

Fechou portas com as tralhas todas lá dentro, e pelos vidros gordurentos da montra ainda se podem ver as cadeiras empilhadas, o pano com manchas acastanhadas pousado sobre a máquina do café, listas telefónicas empilhadas a um canto. Não se vê da rua, mas seguramente lá estarão também os azulejos horripilantes nas paredes da casa de banho, e nos arrumos provavelmente ainda as escarradeiras, que ainda há pouco estavam ao pé do balcão, esses objectos saídos do mais sórdido saloon  e que fizeram parte do mobiliário dos cafés da cidade até há pouco.

Descanse o paz o sítio horrendo, mais uma das vítimas da hecatombe que nos varre o comércio local, e que floresça em breve no seu lugar algo que lhe honre a memória mas não a exalte demasiado.

Comments

  1. Carlos de Sá says:

    … e que servia da pior comida que algum dia me foi servida. Mas tinha uma coisa a que se chama história, feita de tantas estórias. É em estórias dessas que me revejo, ali, feliz, indiferente à fealdade e ao horror da comida.
    Escrito o acima, reparo na presunção de saber de que café fala.

    • Eu quero acreditar que sabe.

      • Eu não sei esse vosso, mas vou por vezes ao café mais feio da minha cidade, onde a proprietária é de uma simpatia atroz, invasiva e intimidante, cheia de salamaleques e a roçar intimidades quer não lhe foram concedidas. Saberia perguntar-me, se eu deixasse, pelos piolhos das crianças e pela borbulha no tornozelo da “esposa”.
        Mas é um sítio tão feiínho, obscuro e estreito que eu escolho a mesa do fundo e tenho a certeza de que ninguém me interrompe, ao contrário dos sítios “giros”, quando quero, por exemplo, ler o jornal.
        A resposta “os pés vão andando, obrigadinho” é um manual de sabedoria e confiança, Carla.

  2. Maquiavel says:

    Há muita história e estórias em cafés bonitos, ou mesmo em feios mas que servem boa comida.
    Sim, porque para mim a fealdade é secundária se a comida for aprumada.
    Desses é que eu tenho pena que fechem…

    • albanocoelho says:

      Subscrevo e aproveito para lamentar o fecho inesperado do Café de Cabo Verde na Corunha (o nome El Rincón de Cabo Verde – castelhano – até se perdoa). A falta que nos fazem aqueles petiscos. Não era dos mais bonitos mas estava longe de ser o mais feio. E tinha WiFi…

  3. Carla, em Filosofia, de que penso que não gostas, define-se a Estética como o estudo da forma ideal e da beleza; penso tratar-se de uma definição demasiado sintética. De resto, café, sala de música, sofá, quadro, qualquer objecto, mulher ou homem, pode ser classificado de belo, ou apenas de bonito, por uns e de feio por outros.
    Mas além disso, por motivos subjectivos e demasiado instropectivos, há quem, em relação a determinado coisa ou pessoa goste dela por ser feia. Uma imagem é dada por esta letra:
    É feia mas gosto dela
    Tenho-lhe tanta amizade
    Como se fosse a mais bela
    Das jovens da sua idade
    É feia sim vejo bem
    O meu olhar não se ilude
    Tem raras prendas porém
    honra, nobreza e virtude

    Feio ou bonito, no Porto ou em Lisboa, o desaparecimento de um café é sempre um acto de extrema fealdade. Que reapareça renovado para teu agrado!

    • Ainda me contarás porque achas que não gosto de Filosofia, não estando eu, com isto, a negá-lo.
      Lembras-te do que dizia o Oscar Wilde? “It is only shallow people who do not judge by appearances.”

      • Carlos Fonseca says:

        Julgo que uma vez, no Aventar de outras eras, o deixaste a entender. ‘Maybe I’am a shalllow human being; that kind of people who is wrong many times’.
        ‘I beg your pardon, My lady! :):):)

        • só queria saber como é que tinhas acertado 🙂

          • Carlos Fonseca says:

            Na turbulência da vida e de outras coisas, há pessoas a quem presto especial atenção, retendo na memória o que escrevem. Tu és uma delas, minha amiga.

  4. nascimento says:

    Ou seja era uma merda….e devemos chorar????dass..

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