Assunção faz citação em segunda mão

Bourreau_executionHá dias em que uma pessoa se sente herói de uma epopeia, capaz de enfrentar multidões em nome de um ideal. Assunção Esteves, agarrada ao leme da Assembleia da República, foi atingida pelos protestos de cidadãos presentes nas galerias, elementos incómodos que mandou evacuar.

Excitada pela descarga de adrenalina, Assunção incitou os deputados a não terem medo, tendo sido aplaudida pelos do PSD e do CDS. Impelida pelas aclamações, ei-la, pressurosa, a declarar que é necessário repensar o acesso às galerias. Muita animação na maioria gozosa.

Eis senão quando, Assunção, já imparável, já de velas enfunadas, declara julgando-se preclara: “Como dizia Simone de Beauvoir, não podemos permitir que os nossos carrascos nos criem maus costumes.” Escusado será dizer que a maioria sentiu calores e calafrios e revirou os olhos.

Seria, no entanto, importante, que alguém explicasse a Assunção que é feio fazer uma citação em segunda mão e que é bom confirmar as fontes, regra fundamental para quem tem uma carreira académica. Ora, Simone de Beauvoir não disse; citou, isso sim.

Na realidade, a frase foi escrita por Gracchus Babeuf numa carta à sua mulher. A escritora francesa fez uma citação truncada dessa mesma carta, no ensaio “Oeil pour oeil” que consta da obra L’existentialisme et la sagesse des nations (há edição portuguesa na Esfera do Caos).

Babeuf escreveu: “Les supplices de tous genres, l’écartèlement, la torture, la roue, les bûchers, le fouet, les gibets, les bourreaux multipliés partout, nous ont fait de si mauvaises mœurs !”. Simone citou: “«Nos bourreaux nos ont fait de bien mauvaises mœurs.» écrivait avez regret Gracchus Babeuf.” Assunção enganou-se na autoria e terá consultado uma tradução manhosa, já que o revolucionário francês relata factos num pretérito infelizmente perfeito; Assunção transformou uma constatação num incentivo, o que é um exagero, mesmo sabendo-se que todo o tradutor é um traidor.

Porque temos a preocupação de que o Aventar funcione como um serviço público, deixamos aqui a frase que Assunção Esteves poderá dizer quando voltar a haver agitação nas galerias, o que já não deve tardar muito: “Como escreveu Simone de Beauvoir, citando, de forma incompleta, Grachhus Babeuf, «os nossos carrascos habituaram-nos mal»”

Quero, ainda, aproveitar para sossegar Assunção, porque aprendi a lição: os nossos carrascos são o Presidente da República, os membros do governo e os deputados da maioria e não há maneira de me acostumar a que continuem a torturar o país.

Comments

  1. Excelente observação . Bem observado , isto é , bem apanhado como se costuma dizer na gíria pública .

    Quanto à lista dos nossos carrascos estou plenamente de acor-do , só que está incompleta , na qual deve estar incluída a Pre-sinte da Assembleia da República entre muitos outros , também
    à esquerda , ou já se esqueceram do depravado e corrupto So-cartes e toda a sua entourage .

    A duvidosa reformada Assunção Esteves que tem uma vida de
    luxo , sem trabalhar , porque o que ela faz não é trabalhar é tramar a vida aos portugueses , esquece-se que a Assembleia da República é a casa do povo , onde os deputados o deveriam defender .

    Os deputados defendem-se uns aos outros , para ficarem cada vez melhor na vida enquanto povo empobrece .

    O que tem de ser repensado é o acesso dos deputados à As-sembleia da República , mas nunca impedir o acesso do povo .

    Isso é ditadura , é pidesco .

    • joao nogueira ribeiro says:

      Bem estas cenas sao o maior descredite que pode existir para a democracia ?… Mas onde é que ela está se cada um só olha para o seu umbigo!::: Boa sorte Portugal?…

  2. silvia de sousa says:

    Obrigada pelo texto interessante que aqui escreve,adorei a conclusão que deixa no fim.não posso contudo concordar que todo o tradutor é manhoso:existe o tradutor que deixa o seu cunho pessoal e por vezes altera o sentido da escrita que pode ser propositadamente como por ignorância das regras linguisticas da tradução,mas também hà o que pretender conhecer a intenção do autor para traduzir na perfeição de modo a não adulterar o texto.

  3. Carlos Roque Santiago says:

    Bom texto. Parabéns.
    Algumas das nossas elites são fraquinhas…

    • Martinhopm says:

      Bem fraquinhas, para não ser mais incisivo. Que dizer, por exemplo, do homem de Boliqueime?

  4. Duas coisas (no dia 14 de Julho!), que podem ser importantes. Uma, existe uma edição antiga da Simone de Beauvoir na BNP (da Estampa em 1968, se bem me lembro), sendo a tradução diversa da Esfera do Caos. Duas, fica ali em baixo a transcrição integral da carta que Gracchus Babeuf fez chegar à sua esposa, datada de 23 de Julho de 1789, dias antes de ser executado (tinha sido julgado e condenado à morte). A carta está reproduzida nalguns sites.

    http://www.histoire.comze.com/babeuf23juillet1789.pdf‎

    « Paris, le jeudi 23 juillet 1789

    Je ne sais par où commencer en t’écrivant, ma pauvre femme ; il n’est pas possible d’être ici, et d’y avoir des idées nettes, tant l’être y est agitée. Tout autour de moi est au renversement et dans une telle fermentation, que, même quand on est témoin de ce qui se passe, c’est à n’en pas croire ses yeux.

    Bref, je ne puis que te rendre en gros tout ce que j’ai vu et entendu. A mon arrivée, on ne s’entretenait que d’une conspiration dont M. le comte d’Artois et d’autres princes étaient les chefs. II ne s’agissait rien moins pour eux que de faire exterminer une grande partie de la population parisienne, et de réduire ensuite à la condition d’esclaves tout ce qui dans la France entière n’aurait échappé au massacre qu’en se mettant humblement à la disposition des nobles, en tendant, sans murmurer, les mains aux fers préparés par les tyrans. Si Paris n’eût pas découvert à temps cet affreux complot, c’en était fait ; jamais crime plus épouvantable n’aurait été consommé. Aussi n’a-t-on songer qu’à tirer une éclatante vengeance de cette perfidie dont n’y a pas d’exemple dans l’histoire, on s’y est résolu et l’on n’épargnera ni les auteurs principaux de la conjuration, ni leurs adhérents. Les exécutions ont commencé, sans épuiser un trop juste ressentiment. La fureur du peuple est loin d’être apaisée la mort du gouverneur de la Bastille et la démolition de cette infernale prison, par la mort du prévôt des marchands, par le pardon que Louis XVI est venu implorer de ses sujets, par le rappel M. Necker et des autres anciens ministres, par le renvoi des nouveaux régiments et des troupes ; il lui faut bien d’autres expiations. On veut encore, dit-on, voir tomber une trentaine de têtes coupables. M. Foulon qui devait remplacer M. Necker, et qui s’étant fait passer pour mort il y a quatre jours, avait fait enterrer une bûche à sa place, ce M. Foulon a été arrêté hier, conduit à l’Hôtel de ville et pendu au moment où il en descendait. Son corps a été traîné dans les rues de Paris, puis déchiré en morceaux, et sa tête, promenée au bout d’une pique, a été portée au faubourg Saint-Martin, pour y attendre et précéder le gendre de M. Foulon, M. Bertier de Sauvigny, intendant de Paris qu’on amenait de Compiègne, où il avait été arrêté, et qui doit subir aujourd’hui le même sort que son beau-père. J’ai vu passer cette tête du beau-père, et le gendre arrivant derrière sous la conduite de plus de mille hommes armés ; il a fait ainsi, exposé aux regards du public, tout le long trajet du faubourg et de la rue Saint-Martin, au milieu de deux cent mille spectateurs qui l’apostrophaient et se réjouissaient avec les troupes de l’escorte, qu’animait le bruit du tambour. 0h ! que cette joie me faisait mal ! J’étais tout à la fois satisfait et mécontent ; je disais tant mieux et tant pis. Je comprends que le peuple fasse justice, j’approuve cette justice lorsqu’elle est satisfaite par l’anéantissement des coupables, mais pourrait-elle aujourd’hui n’être pas cruelle ? Les supplices de tous genres, l’écartèlement, la torture, la roue, les bûchers, le fouet, les gibets, les bourreaux multipliés partout, nous ont fait de si mauvaises moeurs ! Les maîtres, au lieu de nous policer, nous ont rendus barbares, par qu’ils le sont euxmêmes. Ils récoltent et récolteront ce qu’ils ont semé, car tout cela, ma pauvre femme, aura à ce qu’il paraît, des suites terribles : nous ne sommes qu’au début. Je travaille pour le cadastre avec M. Audiffred qui paraît avoir grande confiance dans les ressources à attendre de la publication de cet ouvrage. Je m’étendrai davantage à cet égard dans ma prochaine lettre. Je t’écrirai dès que j’aurai conclu quelque chose avec M. Maury.

    Garde tes dix écus, et ne paye pas un sou à personne, entends-tu bien.

    Je t’embrasse de tout mon coeur. »

    • Adenda. Um mail do JAN alerta-me para que «o Babeuf não estava preso nem tinha sido condenado. Ele relata à mulher que vivia na província o que tinha visto em Paris dias após a tomada da Bastilha. // A condenação e execução do Babeuf, na sequência da “conspiração pela Igualdade” por ele chefiada, foi em 1797». É inteiramente verdade o que se diz (agradeço o cuidado dos filhos de Marx, excusez-moi!): executado em 1797, eu não reparei no óbvio. Erros meus, má fortuna…

  5. Podias ter traduzido os excertos que puseste no texto.

  6. O tradutor é traidor porquê?

    • António Fernando Nabais says:

      Limitei-me a glosar uma frase que explica que não é possível traduzir sem trair o original, por muito bom tradutor que se seja. Trata-se de uma expressão italiana: “Traduttores, traditore”. A própria expressão perde musicalidade ao ser traduzida para português, por exemplo.

      • Pronto, está bem.

      • Martinhopm says:

        É mesmo, Fernando Nabais, ‘traduttore, traditore’ (tradutor, traidor). Segundo este aforismo italiano, como muito bem explica, quase todas as traduções são infiéis e atraiçoam por consequência o pensamento do autor do original. E então na poesia isso é por demais evidente. É possível traduzir, sem ‘trair’, por exemplo, García Lorca?

  7. Joaquim Ferreira says:

    Tanta crítica subjectiva à citação da Assunção leva a mais crítica subjectiva à crítica que já o é. Pior que a crítica sistemática ” porque sim” é a crítica “embuste” disfarçada de crítica “intelectual”.
    Simplificando o acontecimento podemos dizer:
    Não nos vamos pôr aos berros só porque alguém que não nos quer deixar falar se põe a berrar.
    Obs. Aqueles que estavam nas galerias em histeria não representam o povo português, o povo português estava trabalhar para garantir o sustento desta fanfarronice daqueles que vivem à custa do erário público.

  8. Será que a Assunção esteves como os outros políticos e seus
    grupelhos não vivem à do erário público ? São á uns trabalha-
    dores que cheiram a suor por todo o lado .

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