Sejamos sérios

Diz-me o calendário que hoje é dia 6 de Agosto de 2013. Data assinalável a vários títulos.

Neste dia, há 68 anos, acontecia a bomba sobre Hiroshima. Eu era um garotinha atenta ao que ouvia à minha volta: a 2ª Guerra Mundial tinha acabado e em Luanda, onde vivia, tinha havido uma grande manifestação de regozijo, mas eu não percebi porque é que foi preso um homem que deu vivas à Rússia, um país aliado segundo diziam os mais velhos. Muitos anos depois, a conversar com o Raúl Indipo, do Duo Ouro Negro, entrámos nessas memórias e fiquei a saber que também ele tinha ficado confuso: julgou que estavam a dar vivas à Russa, má peça com toda a certeza porque quem a saudava era preso, mas ele nunca conseguiu saber quem era a matrona enquanto catraio. Naquele dia, há 68 anos, eu estava sentada na areia da praia onde vivia mais o Sérgio, o filho do cozinheiro que democraticamente andava na escola pública comigo por decisão da minha mãe. Contei ao Sérgio o que tinha ouvido sobre Hiroshima e adiantei que os americanos iam continuar a deitar bombas por todos os lados. Vem de longe esta desconfiança em relação aos camones e vá-se lá saber porquê. O Sérgio estava de olhos arregalados mas não tugiu nem mugiu. Quem o fez por ele foi o pai cozinheiro que, pelo anoitecer, se plantou diante da minha mãe com o filhote pela mão e declarou que ia dormir ao musseque porque queria morrer ao pé da família. O aranzel que aquilo deu.

Neste dia, há 47 anos, eu já lavrava as leiras do jornalismo e pude ver a inauguração da Ponte sobre o Tejo, que nunca devia ter tido outro nome senão esse. Coisa grandiosa na pacatez macambúzia da Lisboa daquele tempo, com repórteres estrangeiros a tirar fotografias, os embaixadores acreditados na capital faiscantes nas suas fardas de gala, as tropas em parada, Salazar e os ministros de fraque, como uma nuvem negra, e eis senão quando chegou o presidente Américo Tomaz com um séquito de oficiais da Marinha, todos de branco como lírios. O jornalista Renato Boaventura, duma agência noticiosa estrangeira, tocou-me no braço e rosnou baixinho: “Chegou a Branca de Neve e os Sacanões”. Era o que pensávamos e sussurrávamos, não fosse a pide ouvir. Em boa verdade, nenhum deles prometeu liberdade, democracia e respeito pelo povo em nenhum momento. Dali a pouco tempo o Renato morria à beira de uma piscina, em Espanha, traído pelo seu grande coração. Hoje, 47 anos depois, dou graças pelo facto de o Renato não ter visto, ouvido e passado o que todos nós sabemos.

No dia de hoje, dizem-me os jornais que as pensões de reforma dos servidores do estado vão levar cortes brutais; que há doentes na oncologia a quem foram cortados os medicamentos curativos e paliativos por falta de verba; há internados nos hospitais que não querem ter alta porque ali, ao menos, têm comida e cama limpa; há serviços de investigação científica que vão fechar, e os seus membros emigrarão, porque o estado precisa dessa verba para os boys e os carros oficiais dos boys; continuam a fechar empresas, continua alta a taxa de desemprego; Madame Lagarde do FMI diz ao presidente Hollande da França que não se preocupe com o défice e se empenhe no crescimento; mas o primeiro ministro Coelho e o vice primeiro ministro Portas não querem saber disso, estão de pedra e cal vergados diante da troika e da Merkel, enquanto Portugal vai agonizando. E dizem mais os jornais: o pai do primeiro e a mãe do vice estão de coração partido com o sacrifício dos seus rebentos, nada referindo acerca do que sofre o povo com estes meninos mal acabados. Verdade seja dita: o primeiro garantiu, logo à entrada, que era exímio em cantigas e em farófias. Ele bem avisou, nós é que não demos atenção.

Sejamos sérios: estes políticos profissionais nunca nos enganaram, nem ontem, nem hoje. Temos de substituí-los por amadores ou independentes. E temos de aprender, como adultos, a estabelecer regras que mantenham os políticos com rédea curta.

Comments

  1. Sarah Adamopoulos says:

    Gostei especialmente dos estilhaços da memória. Bem escrito, um prazer de ler.

  2. 4 de agosto 1966 – estive na Ponte “sobre o Tejo” (eis Ponte Salazar) acabada de vir de Cabo Verde – lembro muito bem – não cabia nem mais uma pessoa e a ponte aguentou – e ví a sua construção tabuleiro a tabuleiro que parecia entrar-me pela janela dentro – tenho muitas fotos a preto e branco claro – e fui colega de trabalho da Carlota Canto Moniz arqtª filha do engº fiscal da Ponte que terminou antes do tempo previsto no CE e creio também mas não posso afirmar, que custou menos do que o valor estimado e sem adicionais – tudo “COMO HOJE” ??

  3. Pisca says:

    Delicioso o post pelas memórias e em especial por relembrar o Renato Boaventura.
    Tive o gosto, e só mais tarde dei por isso, de o conhecer bem como o Joaquim Letria, quando os dois trabalhavam na Associated Press, ali na Praça de Alegria por cima do Maxime. Eu nos meus 15 anos, onde feito paquete tinha um emprego de sonho, a trabalhar só de tarde, ia ouvindo as deliciosas historias sobre os acontecimentos que nunca eram noticia em Portugal, os dois passavam ao residente americano, as perguntas a fazer nas conferências de imprensa do Franco Nogueira
    Obrigado pela homenagem a quem partiu tão cedo

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