Do piropo

A minha amada e eu tivemos, e temos, uma complexa troca de piropos, uns meses a esta parte. Complexa por ter eu classificado um dela como piropo de pedreiro da Foz, erro geográfico crasso ao mixordiar a tradicional genialidade poética dos pedreiros com a especificidade urbana do Porto e que deu azo a uma vasta troca de piropos deambulatórios contabilizados numa entretanto desactualizada folha de cálculo, deve e haver no google drive, a ver se equilibrava a troca de piropos, essa forma superior da expressão amorosa no verbal aproximativo ou não, desactualizada por culpa minha; estava a perder 5 a 9, fingi erro informático, a coça que levava já não tinha volta a dar-lhe; ela piropeia muito melhor que eu – um humilde invejoso dos dotes piropoteantes dos pedreiros do Norte -, gajos que pelos vistos não trabalham na Foz.

Fica por aqui a exposição pública da minha vida privada fora da realidade sócio-económica que atravessamos. Entretanto, decorria a época de incêndios, e cai-me isto em cima:

Socialismo 2013: Engole o teu piropo.

Philippe de Champaigne - Anunciação

Socialismo 2013 é o encontro em final de Verão do Bloco de Esquerda, onde Ela Almeida e Adriana Lopera  vão pairar entre isto

o facto de o assédio nunca ser referenciado revela até que ponto está instituído que o piropo é inofensivo

e isto

homem é ensinado desde pequeno a ser sujeito sexual, a ter desejo, prazer, orgasmo e falar disto abertamente fazendo alegoria das suas dotes de engate e não só”

ou seja:

A banalização destes comportamentos, tolerados acriticamente pela sociedade e assumidos como supostos atos de amor, sedução ou paródia, na leveza de uma comédia de costumes, reflete a normalização da ideia da mulher enquanto ser que está aí para cumprir o seu papel, ser vista e avaliada, tocada.

Entendido e traduzido, é suponho que assim: a malta somos gajos, tamos condicionados ao piropo, e o piropo é uma agressão, tás a ver, que reserva à mulher “apenas a possibilidade de ser objeto sexual, do homem, ser gira, arranjar-se para o homem a ver bonita, magra, mas não demais… desta forma o corpo da mulher está presente nas fantasias masculinas heterossexuais e na sua realidade, como algo que ele utiliza ao seu gosto e conveniência.” Mas ainda podemos ser salvos a partir da 10.30 do próximo Sábado, no clássico Liceu Camões, sala 3.

Há três gozos tradicionais para este velho sermão:

  • O de direita, as feministas são sempre feias, e têm um trauma porque nunca as assobiaram com um “és munta gira“, quanto mais com o voador “és um helicóptero” mais tarde desdobrável no “é ele e tu: gira, gira, gira…
  • O de esquerda, tanta gente na miséria e vocês a discutirem piropos.
  • E o de quem ensinado desde pequeno a ser sujeito sexual, a ter desejo, prazer, orgasmo, ocupado desde essa baixa altura em tais poucas vergonhas contrapõe, independentemente de seu sexo e mesmo do género : estas gajas são fufas, parvas ou quê?

Eu podia desenvolver um quarto, já que ando aplicado no ramo: o piropo perante o galanteio ou o povo contrapondo-se à burguesia armada em aristocrática, a proximidade de uma estratégia de luta contra a aproximação entre atraíveis sexuais humanos e o discurso normativo do Abominável César das Neves, a compreensível dificuldade do feminismo em se libertar das suas paixões 60/70, e mesmo o papel das feromonas no meio de tudo isto – mas prefiro continuar aos piropos com o meu amor, pelas últimas contas (nós também avaliamos qualitativamente, somos sexo-meritocratas em contínua disputa amo-te mais a ti que tu a mim, quem ganhar progride na carreira amorosa) devo-lhe tantos, que nem com este me aproximo.

Ilustração: detalhe de uma Anunciação de Philippe de Champaigne, c.1644

Comments

  1. Ricardo M Santos says:

    “Aquela miúda é um helicóptero.” – Porquê? “É gira e boa” – ler com sotaque do Porto. Os pontos em debate parecem os dogmas da ICAR de pernas para o ar.

  2. Ricardo M Santos says:
    • Nem tinha reparado nesta. O problema do trabalho sexual é para aqui chamado por alma de quem?
      E não comeces a dizer que a sua legalização é defendida pelo BE, porque infelizmente, e por via das feministas anti-piropo, não é.

  3. há já algum tempo que a luta feminista pela igualdade de direitos se tem vindo a tornar numa luta pela supremacia de direitos das mulheres em relação aos homens.

    http://www.youtube.com/watch?v=V85RF9rbnV0&feature=c4-overview&list=UUzd_MLszn8PYqc5Hq56qtOA

  4. Neste caso só sei dizer que entre marido e mulher não metas a colher .Ao casal em causa ,só lhes posso desejar felicidades e que este mundo melhor para vivermos todos em paz .

  5. nem mais. Não há a menor pachorra para este feminismo de escola primária.

  6. …como se alguma mulher adulta se sentisse ameaçada por um piropo, ou tivesse isso na sua lista de problemas

  7. sempre adorei os teus piropos João 🙂

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  1. […] João já explicou aqui o absurdo da coisa. Eu confesso que como filho da mãe, pai da filha e irmão das irmãs, há […]

  2. […] no Facebook uma muito actual crónica do Manuel António Pina, Crime, Dizem Elas, a propósito dos piropos e sua criminalização na cabecinha das senhoras e meninas da Acção Católica, perdão, da UMAR (União de Mulheres […]

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