Há textos belíssimos na sua forma, escritos de uma forma que apetece beber as palavras uma a uma e saboreá-las, devagarinho, como a um bom vinho de décadas. Ora, eu sou abstémio e é uma pena que quem escreve tão bem desperdice talento a espingardar em todas as direcções e mais algumas que surjam, à espera que um dia tudo passe.
É a rotina que dá cabo de nós. As coisas rotineiras que nos assolam em Outubro, Novembro e Dezembro, quando começa a época de Natal e nos atafulhamos em centros comerciais, chateados como a merda, só porque tem de ser. E damos sempre a esmola rotineira, também ela merdosa, mas que nos alivia a alma e o espírito da data, que é dos amigos-irmãos e tudo o mais. Rotina é isto. Por outro lado, dever é outra coisa. E eu não devo a quem quer que seja o agradecimento pelo meu trabalho. Dever é defender o que é nosso, seja nas ruas ou nos locais de trabalho, exigir o que é nosso por dever. É a rotina que dá cabo de nós, pois é. Mas quando a luta se renova, há sempre um dever a cumprir e, desse, nós não abdicamos.
Talvez seja melhor estar de cócoras, à espera do inevitável, sendo que o inevitável pode ser tudo. Pode ser que esta gente desapareça ou então não desaparece e, lá está, é inevitável. Mas acocorados não ficamos. Podemos fazer as leituras político-partidárias que quisermos da situação que vivemos. Se calhar, há quem o aproveite e não é a CGTP, promovendo o confronto entre trabalhadores do público e do privado e, ultimamente, entre estes dois grupos, para os que estão empregados, contra os desempregados e vice-versa. Porque, ao melhor estilo do empreendedor Martim, mais vale ter pouco que nenhum. E esses crápulas merdosos que ainda têm um emprego haviam todos de ficar desempregados, para saberem o que custa a vida e não dizerem mal da bênção que é ter um emprego. Teoriazinha de merda, não é?
Vamos marchar nas pontes – são duas a 25 de Abril e a do Infante – e os nossos bigodes esvoaçarão, enquanto batemos nas nossas enormes panças que se movem como ondas de choque, fruto dos chorudos salários que recebemos todos. E dos subsídios dos desempregados que connosco marcharão. E dos pensionistas e reformados, que nos sugam tudo, esses patifes, que se recusam a morrer para o país poder andar para a frente. E não faltarão, com certeza, enfartes, por causa da procura de emoções fortes que temos. É a atracção pelo abismo.
E a tragédia, o perigo de ser na Ponte 25 de Abril – recordo que na do Infante não há problema -, por deus. E se alguém salta? E se alguém torce um pé? Que é coisa que jamais acontece em maratonas. E os malucos que encheram o Terreiro do Paço, que podiam muito bem ter caído ao Tejo e ia ser uma grande desgraça e ai-meu-deus-estes-comunas. E que merda vem a ser esta de as vidas do pessoal do sul merecer mais preocupação do que a do pessoal do norte? Então mandai notícias aí da metrópole cá para a província, que estamos aqui acantonados à espera de saber novas vossas.
Ah!, se eu podia ficar em casa a ver a coisa. E a contar manifestantes para dizer que são mais os que correm que os que lutam. E rir-me e a dizer que não vale a pena. Depois, lembro-me da Amélia e está tudo de pernas para o ar. Ela, que até tem emprego e continua a chafurdar na merda para ter o que comer. E tantos como ela. Basta andar pelas ruas à noite, que a pobreza é envergonhada mas a noite é descarada como uma puta.
Esta merda mata-nos, pá. Cansa-nos como tudo. Eu reconheço que estou cansado mas, se a tarefa fosse fácil, seria ordenada por quem manda e não feita por quem recusa obedecer a tudo, que é inevitável e vai ficar bem quando eles saírem. E não vai, não. Que a única coisa transitória na História somos nós, que passamos pelo tempo com a possibilidade de mudá-la e preferimos ficar à espera que eles saiam. É confortável. Mas não dá.
E se saltam da ponte, pá? E se morre alguém para ser um mártir da causa? Às tantas contrata-se um novo Korda e ainda garantimos financiamento para umas t-shirts e tudo, que nós, os acéfalos que vamos manifestar-nos, somos assim maquiavélicos. Temos tudo pensado. E já testámos a coisa num parlamento, mas o gajo sobreviveu. Às tantas vive agora à custa de uma pensão por invalidez, o bandalho, a quem tiraram tudo a bem da crise que os sustenta.
A luta vai adensar-se e subirá degrau a degrau, alcançando o mesmo nível de agressividade de que somos vítimas. A meio é que não dá para ficar, que o limbo é coisa demasiado incerta quando se tem a barriga vazia e nada a perder. A luta adensa-se e nós crescemos com ela ao ponto de não termos adversários. Temos inimigos. E vamos mesmo espingardar para as pontes.
Foda-se!!!!
malcriadão!
Pelo sim, pelo não, no dia 19 levo a boia…
Parabéns pelo excelente texto.
Levamos todos, que vai ser uma grande desgraça.
Mas que raio!
Ando sempre a ler que o gajo escreve bem!
E escreve!
Escreve bem sim senhor (mas é melhor não lhe dizer nada). O problema é que tem um olho vesgo e outro que é cego.
Esqueci-me de acrescentar “num desfazendo” porque vossa mercê escreve qu’é um mimo.
é dos teus bonzolhos.
é de ler (:
Mais uma vez gostei, obrigado