O Jornal de Angola

O primeiro jornal que os meus olhos viram foi o Província de Angola, que pontualmente entrava na casa dos meus pais. Parece que havia outro, o Diário de Luanda, tido e mantido pela União Nacional, mas esse não entrava lá em casa. Nem percebo porquê, porque devia ser feito por gente excepcional, a avaliar pelo trajecto de vários redactores. Um deles, Luís Fontoura, hoje figura de proa do PSD e da Maçonaria. Enfim, embirrações que eu não cheguei a entender. Eu fazia o ensino primário na Escola Sousa Coutinho, mesmo em frente da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, onde fui baptizada. Por estar gravemente doente na altura de entrar na escola só o pude fazer um ano depois, mas aprendi as letras e a juntá-las, em casa, nos livros do Hans Christian Andersen e no Província de Angola. A pouco e pouco, fui tendo o prazer de ler a página infantil que era leira lavrada por Lília da Fonseca. Muitos anos depois, já na universidade e ganhando o meu sustento com uma pequena agência literária de exilados espanhóis nos Estados Unidos, herança benfazeja que me foi deixada pela poetisa angolana Alda Lara, eu haveria de conviver com Lília da Fonseca que tanta paixão punha na literatura infantil e no militantismo de esquerda.

Mas quando eu andava de bibe, o Província de Angola, o mais antigo jornal da África a sul do Saara, era propriedade da família Correia de Freitas. Jornal prestigiado, bem escrito, sério e, ao contrário doutros em Portugal, muito mais avesso à autocensura e sempre às turras com os coronéis da dita. Refilava. O seu último proprietário e director foi Ruy Correia de Freitas, engenheiro de máquinas por Londres, um gentleman de grande aprumo moral e bondade. A exemplo de todos nós dessa geração, o Ruy também queria a independência, mas negociada, pelo diálogo, educadamente, como um filho que passa a viver por si mesmo, mas se dá bem com os pais. Uma independência sem ódio nem guerra, para prosperidade dos seus povos. Como nada disto agradava aos serventuários da União Soviética, quando Angola foi entregue ao MPLA, unilateralmente, o Ruy Correia de Freitas só teve tempo de meter a mulher e a filha na sua avioneta e partir para a África do Sul. Dali foi ao Brasil e ao Canadá, mas acabou por viver (e morrer) em Portugal, na maior modéstia mas sempre com imensa dignidade. Foi a “descolonização exemplar” – coisa que é dita por quem a fez mal.

Imediatamente o MPLA se apossou do jornal, das máquinas, das reservas de papel, de todo o edifício, das contas bancárias e da residência do antigo dono. E pôs-lhe o nome de Jornal de Angola, como quem põe penas no rabo dum cachorro na esperança de ele parecer pássaro. Enquanto por lá mandaram cubanos e russos, o jornal mostrou ter grande estômago e completa cegueira. Depois, passou a ser o porta-voz da dinastia dos Santos, da corte dos Santos, que como todos sabemos é dona dum império de luxo e esbanjamento enquanto há fome, injustiça e perseguição em Angola. Enquanto em Angola há o mais completo desrespeito pelos Direitos do Homem. Há dias este jornal insultou Portugal e o Ministério Público português, em prosa rafeira dum tal Álvaro Domingos, ao que se diz pseudónimo dum mercenário pago a tanto por insulto, pelos glutões do regime – esses que bebem champagne francês às refeições e deixam fortunas nas boutiques de Lisboa, não se incomodando nada com as fotografias que pelo mundo mostram a miséria em que vivem milhares e milhares de angolanos. A prosa teve por pretexto a defesa de Rui Machete, ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, acusado em clamor por Portugal inteiro, menos o triângulo Terreiro do Paço-São Bento-Belém, pelo facto de ter tido o abusado topete de pedir desculpa, enquanto chefe da diplomacia portuguesa, aos tubarões angolanos que têm processos contra si a correr na justiça portuguesa. Que Rui Machete tenha procedido assim e continue a fingir que está inocente, não me surpreende. Conheço-o desde os tempos do PREC no Botequim, o bar de Natália Correia, e desde então não esperava dele mais do que tem feito durante estes anos: carreirismo, oportunismo, mediocriade. Também não me surpreende o péssimo desempenho de Paulo Portas, desde os tempos da Moderna, da Defesa, dos sobreiros e dos submarinos, nem a ausência de coluna vertebral de Passos Coelho ou o descaramento rufião de Miguel Relvas: tudo farinha do mesmo saco.

Se caírem todos no samba, ou na rebita de musseque, ficam no lugar certo e Portugal fica mais limpo. Estes vão morrer sem perceber que, antes de outros, são desprezados por aqueles diante dos quais se põem de cócoras – em Angola, em Bruxelas, em Berlim.

 

Comments

  1. José Luís Moreira dos Santos says:

    Que dizer!
    José Luís Moreira dos Santos

  2. Khe Sanh says:

    Tem piada que também estive em Angola e já usava óculos. Os sacanas só me mostraram miséria,atraso e desolação. Uma vez até consegui ver que o analfabetismo entre a população autotene era superior a 95%.
    Outra vi que um negro com as mesmas qualificações de um branco ganhava em média metade do vencimento.

    Ver para além do conforto da janela das nossas casas sempre se vislumbra mais qualquer coisita.

  3. Victor Correia de Freitad says:

    Quer saber a verdade toda àcerca do jornal e como saimos de Angola..?

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