José Saramago e o pato do dia

1379421_10152012433262474_1087805151_nDepois do pato com laranja, a nouvelle cuisine ortográfica inventou uma receita: o “pato com o diabo”. Não me espantaria que tivesse origem na criação de patos de silêncio, esses simpáticos palmípedes anunciados ao mundo graças aos bons ofícios do chamado acordo ortográfico.

A nova iguaria pode ser encontrada na 12ª edição de Caim, de Junho de 2011, como é possível ver-se na imagem supra, tratada com o habitual desvelo pelo João Roque Dias. Poder-se-ia dizer que José Saramago, depois fazer viajar um elefante até Viena, mandou um pato para o inferno, terrível crueldade. Note-se, ainda, que esta obra faz parte do Plano Nacional de Leitura: aliás, a descoberta do animal deve-se a um aluno de 12º.

É claro que o “pato com o diabo” não está no original. Saramago usou e abusou do engenho e da imaginação, sem que isso implicasse maltratar a ortografia.

O contrato com o demónio que se transformou em parente de Donald será, portanto, mais um resultado (in)esperado de um alegado acordo ortográfico que – insista-se – não só não é acordo como deu origem a erros que, anteriormente, eram inexistentes ou, no mínimo, residuais. Este espécime é, também nisso, da mesma família de fatos e contatos.

A não ser que… Lembrei-me, agora! Sigam o meu pensamento, por favor! A Caminho, editora de Saramago, foi comprada pela Leya, certo? Certo! A Leya, por sua vez, procura estender-se ao mercado brasileiro. Vai daí, pode ser que a opção por “pato” se prenda com a grafia brasileira da palavra, a lei dos mercados a sobrepor-se, naturalmente, às regras da ortografia, que é preciso é vender, nem que seja consoantes!

É com a ânsia de confirmar, vaidosamente, um raciocínio com tudo para ser brilhante que consulto o Aurélio. Eis a desilusão: os brasileiros, teimosos, insistem em continuar a escrever “pacto”.

De qualquer modo, as obras de Saramago, no Brasil, são editadas pela Companhia das Letras. A curiosidade aflige-me. Será que, na edição brasileira de Caim, o diabo terá direito a pato?

Entretanto, num pequeno país da Europa, os maus tratos sofridos pela ortografia já se estendem às edições dos livros do único Nobel da Literatura que a língua portuguesa recebeu, o que é mais uma maneira de propagar o erro. Também neste campo, a leviandade é o pato do dia.

Comments

  1. sinaizdefumo says:

    Tanto chinfrim por causa dum ridículo erro ortográfico. V. sabe que a culpa não é do 90, que não alterou a palavra mantendo-se portanto ‘pacto’, é do nabo que escreveu e do nabo que (não) fez a revisão. Mas pra si é o AO que paga o pato. Mas olhe que há muita malta de 45 que escreve ‘contracto’ em vez de ‘contrato’; como é, é o 45 que paga este pato?

    • António Fernando Nabais says:

      Como é comentador habitual dos meus textos, já deve ter lido os suficientes para perceber que nunca afirmei que os erros ortográficos nasceram com o AO90. O que afirmo – e está comprovado – é que, com o AO90, surgiram erros que não existiam anteriormente (basta consultar as hiperligações), o que sucede mesmo entre gente letrada, como cronistas de jornais e revisores de livros. Vivemos numa sociedade que, por várias razões, não tem cuidado suficiente com o ensino e a aprendizagem da língua materna (ou com o ensino e com a aprendizagem, em geral). O AO90, por ser mal concebido e por ser mal aplicado, veio aumentar os problemas. Não escrevi “criar, escrevi “aumentar”.
      Para si, pelos vistos, um erro ortográfico num livro de uma editora prestigiada, de um autor prestigiado, que, ainda por cima, é especialmente aconselhado a leitores jovens, não deve ser motivo de preocupação.

      • sinaizdefumo says:

        Claro que sim, que sei. Claro que sim, que é.
        V. é sério, honesto e competente nas matérias que aborda. Mas que diabo no caso em apreço o AO não tem nada a ver.

    • anacrish says:

      Não é UM erro ortográfico, este grafia é utilizada ao longo de TODO o livro. Graças aos patos bravos da língua.

  2. “Pacto” continua a ser “Pacto” após o AO.

    • António Fernando Nabais says:

      E “facto” continua a ser “facto”, como “contacto” continua a ser “contacto”. Só falta perceber ou explicar por que razão, nos últimos dois anos, há uma praga de “patos”, “fatos” e “contatos”.

  3. Nada a acrescentar ao que foi escrito por António Fernando Nabais. Os apóstolos do AO90, e que são indiferentes, fariam melhor em informar-se. Há comentários que a a informação tornaria redundantes, desnecessários, inúteis e malévolos.
    António Fernando Nabais escreve, com acerto: “será, portanto, mais um resultado (in)esperado de um alegado acordo ortográfico que – insista-se – não só não é acordo como deu origem a erros que, anteriormente, eram inexistentes ou, no mínimo, residuais”.
    Isto está sobejamente documentado. Assim como os “fatos”, os “contatos”, os “impatos”, os “compatos”, as “oções”, os “retos”, os “adetos”, etc. etc.. Tudo isto se tem multiplicado como coelhos. Claro que o AO90 não sanciona coisas destas. Nem foi dito que sancionava. Mas o uso aplica a lei da analogia, suficientemente bem estudada e documentada. É que o dito prescreve “Egito”, quando há quem pronuncie “Egipto” e assim sempre se pronunciou, na tal pronúncia culta. Eu pelo assim sempre ouvi e pronunciei. Outra: “cetro” e “ceptro”, sendo que em Portugal sempre se pronunciou “ceptro”, mas os dicionários, vocabulários (in)ortográficos e Linces da vida só aceitam “cetro”, a variante típica do Brasil.
    Quando um medicamento gera efeitos secundários, retira-se do mercado, não se prescreve dose extraordinária do mesmo, nem se coloca a culpa no paciente, por supostamente não o aplicar que chegue. Prosseguindo a anaalogia, o AO90 é como a medicina antiga, a da sangria: nunca chegava de secar o paciente.

  4. Aparentemente, a edição brasileira da Companhia das Letras está em bom português (de Portugal), a julgar por este pdf (provavelmente ilegal): http://bit.ly/H63goA. Lá encontramos, muito rapidamente, acto e facto, projecto e contacto. E encontramos, também, no excerto em causa, pacto. Pelo que, presumindo que são duas edições reais (e não tenho nenhuma razão para crer que o não sejam), não se trata de uma “gralha”, mas da remoção de um cê motivada por ‘acordite’ em último grau. “Por desejo do autor foi mantida a ortografia vigente em Portugal”. Esta edição é de 2009, suponho que edições mais recentes mantenham outra ortografia de Portugal.

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  2. […] o problema parasse em “pára”, seria menos mau. Mas há os contatos, os fatos, os patos e muitos outros erros que, após a imposição descuidada do AO90, se juntaram a outros que já […]

  3. […] e PS andam, neste momento, a disputar o pacto (que, por vezes, é pato), já que ambos reclamam para si o mérito do acordo com a […]

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