Numa manhã qualquer

Um post da autora convidada Maria de Almeida


Foto: Henri Cartier-Bresson

Num daqueles lugares, que se dizem impessoais, numa repartição pública, o dia, ou melhor a manhã, corria ao ritmo do cumprir dos processos, do atender o público que ia chegando, do toque dos telefones, que, insistentemente, teimavam em não deixar dar sentido e forma, àquilo para quem, os quatro que lá trabalham, são (mal) pagos para fazer.
A porta abre-se uma e outra vez, e às tantas deixa entrar um homem baixo, negro, que fica perdido no meio do corredor, que as secretárias formam.
– Bom dia! Diga….
– Arglh arglh blhark – diz a criatura.
(- A coisa está complicada – penso.)
– O senhor não consegue falar? – pergunto, enquanto reparo no braço direito, que mal dobrado lhe caí ao longo do corpo.
Como resposta recebo um aceno de cabeça que entendo como um não.
– E sabe escrever?
Mais um aceno de cabeça. Um “sim”, entendo.
Passo-lhe, então, um papel e uma caneta para a ponta da mesa, onde, Abdul, chamemos-lhe assim, começa, com dificuldade, e numa letra trabalhada, a rabiscar as razões porque ali se encontrava.

“Pode dizer-me quando é que eu posso vir receber o meu dinheiro?”
Abdul tinha sido vítima de um violento acidente de trabalho, que o havia atirado longos meses para uma cama de hospital, depois de uma tábua com um prego lhe ter perfurado o crânio, numa obra onde prestava serviço para um sub-empreiteiro de construção civil, para quem já trabalhavam outros seus compatriotas guineenses, também em situação de ilegalidade.
Até ali, aquela história, mais não era que só um processo, que com a pressão do dia-a-dia, a quantidade de trabalho e outras razões que não vêm ao caso, nos fazem esquecer que um processo, mais não é que um dossier com gente dentro.
Estava para breve a resolução possível da situação – disse-lhe.
No papel surgem mais umas letras: “tenho 5 filhos menores em casa, já não há água, luz, gás, ou sequer comida. E nisto mostra os papéis possíveis para provar o que diz. A carta do banco a ameaçar com despejo e tudo o resto, os cortes dos serviços básicos e as despesas da farmácia.
Não está na nossa mão, no imediato, resolver a sua situação – disse-lhe.
Num gesto de humildade, a cabeça baixa, vira-se para a parede e daqueles olhos tristes caí um mar de lágrimas, em silêncio.
O ambiente é pesado e os olhares de quem presencia a cena trocam-se de forma interrogativa.
Analisado o processo verifica-se que do ordenado que ganhava – cerca de mil euros – o sub-empreiteiro havia transferido para a companhia somente o equivalente ao ordenado mínimo, e durante todo aquele tempo em que durara o tratamento, que o deixara perfeitamente incapaz, tinha recebido, apenas 70% desse valor.
O homem tremia desenfreadamente. Quando questionado, consegue transmitir que há 3 dias que não comia. Não entrava nada em casa, porque a solidariedade de quem o podia fazer já tinha terminado, porque o emprego dos compatriotas também tinha terminado, com a “crise da construção” e dos patrões nem rasto.
Das nossas gavetas saíram duas pequenas maçãs, um pequeno pacote de leite e um pacote de bolachas aberto com todo o cuidado.
As maçãs desapressem no interior da boca quase instantaneamente. O leite é bebido sofregamente.
“Coma bolachas” – disse.
“Não” – acena com a cabeça – ao mesmo tempo que aponta para o bolso, como que a dizer que as ia levar para casa.
As lágrimas assolam então todos os que assistem à cena. Não só pela miséria (afinal era só mais um caso), mas sim pela dignidade daquele homem a quem a vida já tirava tudo, mas que teimava em mantê-la.
Começa, então, a juntar-se o dinheiro que havia nas carteiras, passam-me pelos gabinetes e recolhem-se outras quantias, no meio de conversas contra o sistema e a impotência que sentimos face a mais esta situação e à insensibilidade de que faz as leis desta parte “parente pobre” do Direito. Entregamos o que conseguimos e prometemos agilizar, na forma possível a situação, por forma a que a miséria, não deixando de a ser, deixasse de raiar a indigência.
No dia seguinte, o homem apresenta-se novamente no mesmo local, mas já sem olhar tão triste Mostra-nos então o tiquet dum supermercado, onde figuravam vários produtos básicos, e num gesto largo com o braço, diz um “Obrigado”, aspirado da forma que conseguiu fazer sair a voz, por termos conseguido matar a fome à família que tinha em casa.
Se isto é um homem? Se isto é aquilo que se pode chamar dignidade? É isto o que se pode chamar a retoma? São situações como estas, que se repetem aos milhares por todo o país, que fazem pensar os que fazem as leis que nos governam?

Comments

  1. Texto lindíssimo, parabéns! Acertivo e comovente.Descreve de forma exemplar a tragédia diária de tantos dos nossos. Espero que consigamos passar este pesadelo sem perder esta enorme solidariedade que nos identifica, e que a dignidade de todos os Abdul não se perca.

  2. nightwishpt says:

    Na cabeça dos radicais, imagino que seja um preguiçoso que não quer é ir trabalhar e só quer direitos adquiridos, e que não se lhe pode dar nada por causa da dívida.

  3. motta says:

    Mais um nó na garganta…

  4. João Oliveira says:

    Lindo, a mostrar-nos que a torrada do pobre cai sempre com a manteiga para baixo! Depois a elite sociológica apontará como um caso de “darwinismo social”.

  5. Sandra Nobre says:

    Uma narrativa excelente, muitíssimo bem escrita, e muito bem ilustrativa da tristeza e da desgraça a que chegou o valor da vida humana neste país…
    Este caso, o do “Abdhul” infelizmente está longe de ser único ou raro…
    A mim confrange-me, preocupa-me e revolta-me viver num país onde as pessoas que atiram seres humanos e famílias inteiras para a desgraça, a fome e a miséria, sem sequer pensarem duas vezes, continuam a gozar de total impunidade.
    Aflige-me ver que o número de pessoas que ficam sem um tecto, que não têm o que comer, que não têm como alimentar os seus filhos, aumenta exponencialmente a cada dia.
    E tal não sucede só com as pessoas que estão neste país ilegalmente. Há milhares de famílias portuguesas a passarem fome, que perderam o seu tecto, que não têm a quem recorrer.
    Que raio de país é este, que atira o seu povo – CONSCIENTEMENTE – para a miséria, e cujos governantes vivem e desbaratam o dinheiro dos nossos impostos, vivendo como autênticos nababos, alimentando esses luxos à nossa custa, sabendo que “na porta ao lado” alguém ficou sem emprego, sem apoios, sem ter o que comer?
    Por vezes dou comigo a perguntar se essa gente tem coração, se tem alma…
    O “Abdhul” teve a fortuna de encontrar verdadeiros seres humanos, solidários, grandes de coração, que o ajudaram com o que puderam…
    Mas isso valeu para um dia…
    O que será dele e da sua família nos demais dias???
    Quantos “Abdhul” há por este país fora, que nem por um dia têm com quem contar?
    O que diabo fazem os “Bancos Alimentares”, que – e não né venham com patranhas – em dois meses fizeram duas campanhas de angariação de alimentos, e que (felizmente) correram tão bem?
    Porque não ajudam o “Abdhul” no imediato, até ele receber o que lhe é devido?
    Onde está a actuação da Segurança Social e da Inspecção do Trabalho?
    Já obrigaram o ex-patrão do “Abdhul” a declarar o verdadeiro salário dele? Já cobraram as respectivas contribuições ao Estado? Isso devem ter feito…
    E o papel social do nosso Estado, onde fica?
    É mesmo necessário que as pessoas tenham que abdicar da dignidade que têm enquanto seres humanos e tenham que MENDIGAR para obterem algum apoio?
    Tanta gente deveria pintar a cara de branco…
    Mas a falta de vergonha que os caracteriza nem a isso is conduz.
    Que possamos, todos nós, e um bocadinho que seja, sermos solidários com os tantos que precisam, porque se dependerem do Estado, onde a Justiça é uma falácia, espera-os – e às respectivas famílias – a desgraça, a miséria, a fome, e a… morte???
    Que Deus abençoe quem ajudou o “Abdhul”, e à Maria Almeida,os meus parabéns e o meu muito bem-haja por este post, tristemente realista, mas cuja leitura poderá vir, quiçá, a despertar algumas consciências para a duríssima realidade que muitos enfrentam para tentarem (sobre)viver em Portugal nos nossos dias…

    • marés vivas says:

      Tão triste e a tropeçarmos todos os dias nestas historias de vidas desavindas sem anjos para os agarrar! Muito bom o texto. Gostei muito tristemente!….

  6. Clément Gouvillier says:

    Absolutamente actual… É um reflexo de uma realidade que nos toca. É uma retrato social marcante e bastante ilustrativo do que se passa neste Portugal perdido nas mãos de políticos que constituem o arco da governação e do estado insensível e cada vez mais distante da sua responsabilidade sociológica e humanista, onde a cidadania se perde nas gavetas economicistas de quem decide, escusando-se e recusando a dar exemplos credíveis, numa estratégia que pudesse permitir e fomentar alternativas empreendedoras, que apostem num desenvolvimento económico sustentado e pecurssor da melhoria da qualidade de vida do País e dos Portugueses.

  7. Mesmo que há 2 anos deixem, por dia o país, milhares dos que aqui não conseguiram ficar e viver e produzir riqueza para todos, pareceria que os “Abdhul” seriam menos e/ou estariam mais protegidos – mas demonstra-se que não – e que interessante foi ontem o congresso do CDS e as notícias de quem voou para o Goldman Sachs, e para a UE e para não sei onde e vão ficando cada vez mais Adhul – e outros que caminham para estar como ele, além dos que continuam a morrer sós continuando-se a não se dar por eles, senão quando alguém consegue, ou quer, noticiar – E se algo mudou foi a destruição de bens primordiais nacionais e pessoas em queda livre desesperada – E nada acontece por acaso, que foi planeado e dito até, para que não ficássemos “espantados apenas” e sem resposta, como continua a não haver

  8. Maria João Sacadura says:

    O caso deste Abdul fez-me pensar nos inumeros portugueses que estão neste momento espalhados pelo mundo a sofrer este e outros tipos de sevicias. Saiem todos os dias aos milhares porque cá não lhes é possivel continuar, e na sua maioria caem na voragem desse mundo. De muitos não se houve mais falar, o que tanto pode significar que estão bem mas não querem nem ouvir falar disto aqui, como pelo contrario, que podem pura e simplesmente estar mortos ou na indigência. Aqueles de que vamos ouvindo falar relatam muitas vezes historias de desalento. Os que ficam em pior situação são, parece-me os que caem na mãos de outros portugueses lá fora. Nada como o nosso povo para a inveja, a maledicência, a denuncia… Enfim é o país que temos, mas há que não esquecer que o país é relexo do povo.

  9. Obrigada a quem escreveu por me relembrar que estes “livros” que temos à frente encerram histórias de pessoas reais.

    Aquilo que para nós, tantas vezes, é apenas um número tem “apenas” a vida dos outros em suspenso. Aquilo que para nós é humanamente impossível de tratar diariamente, é a forma desumanamente possível que alguns têm de viver.

    Obrigada a quem está por dentro do assunto e mostra o lado do avesso da justiça.

  10. Somos um povo fora de validade, que já expirou o prazo. e que por tal, necessita de ser retirado da prateleira, pois já não vai dar qualquer lucro, para aqueles que gerem esta sociedade, como se de um negócio se tratasse.
    Fala-se nos direitos constitucionalmente garantidos, tais direitos fazem parte da lei suprema desta sociedade.Quais? Onde?
    Chegados a uma conclusão, somos apenas números.
    Se esses números dão lucro é para manter, com o minimo de despesa. Se não dão lucro, é um número a eliminar.
    Portanto quanto mais se prolongar e arrastar a tragédia e a miséria de um povo, mais números vão desaparecendo naturalmente, sem que para tal se possa apontar um culpado,
    “É apenas o sistema”
    BOA?

  11. Rui Frias says:

    O Governo continua a vangloriar-se de que supostamente o resgate acaba lá para Maio, cantam vitória, o galo também canta, mas sempre com as patas na porcaria. Dói-me que os políticos desconheçam esta realidade, às vezes digo que no governo ninguém sabe nada sobre o que se passa aqui no interior (sou da beira alta), mas também nada sabem sobre a vida de muitos Abduls que vivem mesmo aí ao pé. O Governo conhece esse seu mundo limitado, de negociatas, de temos de pagar a qualquer preço mas nada sabe sobre as pessoas, como disse um dia o grande poeta Francês Paul Éluard autor de poemas contra o nazismo que circularam clandestinamente durante a Segunda Guerra Mundial, “Existem outros mundos, mas estão neste.”

  12. Ju Oliveira says:

    Até fiquei arrepiada…

  13. Zé Povinho says:

    Excelente texto duma realidade cada vez mais usual, diária e imensamente extensivel ao futuro, pois como portugueses, acabamos por ser o povo mais lento do mundo: demoramos quarenta anos a arrancar um oliveira mais ainda lá deixamos um fp dum cavaco. Eu vendo o que se passa com a alimentação das nossas criançasnas escolas, comparada com a alimentação dos presos, e pior ainda, com a dos parasitas que estão lá num palacio amarelado, fico cada vez mais desgostoso com tudo isto, por ver a insensibilidade dos fp dos governandes, que cortam onde não deviam e continuam a ter e proporcionar brutais mordomias, pois foram para lá com as camisas coçadas e os fatos esfarrapados e agora vestem grandes marcas e andam e brutas máquinas. mas não nos devemos esquecer das palavras do Almirante Pinheiro de Azevedo, quando o cercaram na AR e ele disse que era só fumaça e que o povo era sereno! O povo é mas é carneiro, mas sem cornos, pois não marram! Possivelmente não gostaram do meu texto, mas por favor não se esqueçam, que os comunistas eram acusados de comer criancinhas ao pequeno almoço, mas estes sociais democratas e democratas cristãos andam a comer o pequeno almoço ás criancinhas! Falta cá outro Salgueiro Maia, pois se este não tivesse tido os “tomates” que teve, em aguenta a situação, não seriam os Otelos e os Eanes que estavam nos postos de escutas que faziam a revolução! E além disso nunca vi uma revolução sem sangue…..até nisso somos ovelhas!

  14. Zé Povinho says:

    Tiro o meu chapeu ao autor deste comentário!

  15. Paulo Caiado says:

    Este texto merece muito mais que ficar aqui confinado a centenas de olhares de um blog. Deveria ser solto para um público mais vasto. Do texto sai um grito. E sai também uma vergonha que nos embaraça a todos. Cada vez que o Estado se comporta com indignidade, torna-nos a nós todos pouco dignos. O Estado tem que ser a vontade colectiva. A expressão dos valores colectivos. Eu envergonho-me com este Estado, envergonho-me que tenhamos recuado dezenas de anos do ponto de vista social. Este Estado embaraça-me! E a única forma que tenho de reagir e prestar voluntariado, é envolver-me em acções de solidariedade e em Instituições Sociais como forma de atenuar esse embaraço. Eu ando envergonhado com o que este Estado anda a fazer com os portugueses e dos portugueses e de todos os que aqui vivem e nos ajudaram a construir o país, sobretudo ajudaram a erigir estradas e pontes nas últimas décadas! Eu não me reconheço neste Estado e vejo-me impotente para impedir que ele me cubra de vergonha!

  16. Wanda Ribeiro Miranda says:

    Um relato pungente do que se está a tornar infelizmente quase ‘banal’ nos nossos dias…! Mas, e volto a dizer ‘infelizmente’ não é só cá…!
    Obrigada por partilhar com os amigos as experiências vividas, que tão bem sabe passar para o papel… upsss! para o computador 🙂 !

  17. Ana Amorim says:

    Infelizmente este relato tão tocante e tão bem escrito e cujo protagonista é de um outro “Abdul”, também poderia ser de um João, de um Manuel de uma Teresa ou Joaquina. Este texto é de uma realidade cada vez mais usual, e assustadora .Existem profissões que são confrontadas quase diariamente com esta triste e dolorosa realidade e para as quais a impotência de as resolver é frustante, sobretudo porque quem deveria ser responsabilizado, está comodamente e friamente de costas voltadas para o estado em que este país de encontra.

  18. Hermínia gomes says:

    Obrigada Maria por saberes tão bem descrever a vergonha da nossa sociedade tão embrulhada de desumanidade! Sinto vergonha pela falta de quase TUDO, neste desgoverno do governo…! Gosto muito de te ler, que bom é existirem pessoas como tu, ACORDADAS, VIGILANTES, PARTICIPANTES! Obrigada Maria!

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