Que mil Eusébios floresçam

José Xavier Ezequiel

pantera_eusebio

Desde a morte da senhora-dona-Amália que não se assistia a tamanha comoção pública. Feitas as exéquias, espero conseguir perorar sobre o assunto sem correr o risco de ser liminarmente linchado.

1 — O NOME.
Eusébio sempre foi Eusébio (vá lá, Inzébio para alguns disléxicos como Jorge Jesus). De repente, políticos venerandos, jornalistas atenciosos e comentadores desportivos despachados, desataram a chamá-lo Eusébio da Silva Ferreira. Talvez pensem, naquelas cabecinhas oportunistas, que o enormizam. Antes pelo contrário — apenas é conhecido por um só nome quem é realmente grande (Amália, Camões, Mandela, Maradona, Zappa, Eusébio.)

2 — O COGNOME.
Quando eu era mais pequeno, Eusébio era conhecido por ‘Pantera’. Se alguém pretendia, por uma razão ou por outra, realçar-lhe a cor da pele, chamava-o ‘Pantera Negra’. Por estes dias, gente insuspeita (e até muito republicana), tratava-o por ‘Rei’. Alguns mesmo, puxando galões mais internacionalistas, por ‘King’. Não me parece. Os reis (e os ‘kings’) costumam herdar os títulos. Eusébio nasceu e morreu plebeu. E teve que correr como o caraças para ser quem é.

3— O MITO.
O mítico jogador. O mítico estádio. O mítico jogo. O mítico raio que os parta. Bem sei que os jovens jornalistas, hoje em dia, não devem muitos favores à cultura em geral, quanto mais à clássica (a culpa não é só deles, bem sei). Porém, se têm mesmo necessidade de adjectivar, convinha perceberem que um mito é uma coisa que não existe. Por exemplo, na frase: ‘Cavaco Silva é um homem probo’ — um ‘homem probo’ é um mito. Já Eusébio, tendo existido em carne e osso, nunca pode ser um mito. Suponho que, quando estas criaturas dizem ‘mítico’, quereriam talvez dizer — lendário. Um raio de uma palavra que tem apenas mais uma sílaba. Que diabo, não há-de ser assim tão difícil de soletrar.

4 — OS OSSOS.
Mal Eusébio morreu, elevou-se um rodopio de políticos pressurosos. Todos, da esquerda à direita, a trabalharem para os calos nos bicos dos pés. Se pudessem, levavam-no imediatamente para o Panteão. Ainda quente.

Calma. Os ossos contam, realmente, quando os arqueólogos se debruçam sobre a pré-História. Quando não há nada melhor para fazer prova forense. Neste caso, não faltam documentos escritos, fotografias colorizadas, jogos inteiros contra a gloriosa República Democrática Popular da Coreia.

Por outro lado, talvez não fosse má ideia reler a Lei n.º 28/2000, ela própria já feita à pressa (e por medida) para poder acomodar a senhora-dona-Amália. Define que o Panteão Nacional se destina “a homenagear e a perpectuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao país, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade”.
Nesta tipologia, em que domínio encaixa Eusébio? “Na expansão da cultura portuguesa”? “Na defesa dos valores da civilização”? Com muito ou pouco gelo?

O melhor, talvez, seria deixarem Eusébio descansar, em paz, no cemitério do Lumiar. Até o nome ajuda — Lumiar, Luz, Lampião. Por assim dizer, ficamos todos em casa.

5 — O RELICÁRIO.
O povo, tolhido de emoção, acorre a depôr cachecóis na estátua de Eusébio. A direcção do SLB e manda retirar os cachecóis dos ‘outros’. A mesma direcção promete voltar a mandar repô-los, devidamente desvandalizados, logo que o relicário estivesse pronto. O senhor presidente da câmara despacha (overnight) a licença para o dito relicário. Em acrílico. Lindo de morrer.

Se eu fosse bispo de Leiria, começava a preocupar-me com o negócio de Fátima. Sobretudo se António Costa (um conhecido lampião — e hereje) começar a despachar licenças para vender velinhas à porta do Colombo.

6 — A FÉ E O IMPÉRIO.
E ‘prontos’. Tendo morrido o último ícone dos três éfes da antiga senhora — fado, fátima e futebol — seria legítimo esperar que, finalmente, conseguiríamos seguir em frente. Mas não. Seria bom demais para ser verdade. Somos tugas, temos ‘o destino marcado desde a hora em que nascemos’.

Logo no dia seguinte, como qualquer outro político em menopausa eleitoral, o senhor-presidente-do-Benfica deu uma entrevista onde prometia que, para o ano que vem, todas as camisolas levarão a cara do Eusébio (se no lugar da águia Victória, se no das enigmáticas 3 estrelinhas, os gajos do ‘marquetingue’ é que vão decidir — Filipe Vieira, mais coisa menos coisa, dixit).

Por este andar, não me admira nada se um destes fins-de-semana as claques do SLB começarem a cantar, em êxtase:
O BENFICA É GRANDE E EUSÉBIO O SEU PROFETA.

Comments

  1. Paulo Correia says:

    Não gostava de ter escrito isto. Alguma couve estragada “Xosé”?

  2. Que o espírito do senhor-Eusébio-pantera te acompanhe.
    Haja quem desmistifique o indesmistificável.

  3. Excelente José Ezequiel, excelente! Este artigo devia ser de leitura obrigatória! Parabéns!!

  4. sinaizdefumo says:

    Munto bem escrito e de morrer a rir de princípio a fim. Mas «O BENFICA É GRANDE E EUSÉBIO O SEU PROFETA»!? Cum caraças é d’ir às lágrimas. Imprima-se e emoldure-se!

  5. sinaizdefumo says:

    Quem escrebe assim debia de pertencer òs quadros permanentes. Espero que o convidem de vez para perpequetuar o bom humor no Aventar. 🙂

  6. Finalmente alguém revela lucidez neste portugal dos pequeninos. Parabéns por este excelente texto!!!

  7. Nightwish says:

    Já não se aguenta com o homem.

  8. j. manuel cordeiro says:

    “xalente” 🙂

  9. Maria de Almeida says:

    “Nesta tipologia, em que domínio encaixa Eusébio? “Na expansão da cultura portuguesa”? “Na defesa dos valores da civilização”? Com muito ou pouco gelo?” – Um must!
    O texto está todo ele explêndido, note-se.

  10. Rotund says:

    Tanta ignorância assusta.

    Fado, Fátima e Futebol já existiam antes da antes da outra senhora.

    Em termos populares, nem se fala. O Fado já tinha ultrapassado Alfama e os teatros populares. O Futebol já enchia 20 mil em bancadas, mais do que jogos de hoje em dia.
    Também já existiam ícones de Fado e de Futebol antes da outra senhora.

    Nessa tipologia, em que categoria se encaixam Sidónio Pais e (pasme-se!) ÓScar Carmona? gostava de saber.

    Como bem escreveu Pulido Valente, se fossem vivos, os que estão no Panteão não falariam entre eles.

    O pobre do Eusébio é que não tem culpa disto. É apenas um símbolo desportivo de Portugal.

    Já pensou no oposto?
    É certo que em Portugal nem o desporto é visto como cultura (!), não admira os nossos resultados desportivos internacionais serem tão fraquinhos – é que na maior parte dos países o desporto é um actividade cultural decente.

    “Somos tugas?” – Sabe ao menos que a maior federação de futebol do mundo é a… alemã? Esse país moderno e de “grande cultura”. Sabe que quando a França foi campeã do mundo, o arco do triunfo tinha mais de um milhão de pessoas ao seu lado com a cara de Zidane nele espelhada. Até a rainha do Reino Unido recebe e condecora vencedores ingleses de Wimbledon, considerados heróis nacionais.

    Cá a nossa elite acha que a cultura é apenas escrever, ciência ou arte. E eu bem gostava de saber onde estão esses grandes valores portugueses que tanto deram à humanidade, a partir da escrita, da ciencia ou da arte: são tão raros, mal se vêem….

    O problema não está no Eusébio, que deve ser valorizado pelo que fez. O problema é que a restante cultura em Portugal é muito fraquinha e gosta de estar separada da cultura do povo (neste caso, Eusébio).

    Creio que sempre foi esse o principal problema português, a nossa elite valoriza o “condal” e tem desprezo do “povinho”, cujos símbolos devem ser “desmitificados” porque o símbolo deve ser apenas o “grande”.

    Agora é que fazia falta um manguito.

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