Desabafo de uma pessoa com deficiência

Não a conheço pessoalmente, mas por um daqueles acasos da vida muito intermediados por uma rede social cujo nome não referirei e que acaba de completar dez anos de idade, encontrei a Manuela Ralha.
É uma entre muitas vítimas de acidentes que ficam amarradas a uma cadeira de rodas.
Pois bem, esta Mulher, esta Senhora, que eu não conheço pessoalmente, decidiu que a cadeira de rodas não seria o fim. Que o seu mundo não acabaria ali.
Renasceu das cinzas em todo o seu esplendor. Vi fotos dela e é uma mulher bonita, aliás, quase aposto que é mais bonita agora do que era antes do malfadado acidente.
É tudo aquilo que todos deveríamos ser: lutadora pelos seus direitos, mas também pelos direitos dos outros, boa mãe, esposa, incansável nas suas lutas.
Mas as pessoas incansáveis também se cansam e um dia destes, mais concretamente no penúltimo dia de Janeiro deste ano, a Manuela escreveu o que se segue:
«Há aqui algumas reflexões que me apetece partilhar hoje…quem não me conhece e lê os meus posts ou acompanha as minhas ações pode achar que eu tenho uma vida independente, fácil e sem problemas acrescidos, ou até que sou uma torre ou uma rocha ou ainda que o trabalho que faço em prol das pessoas com deficiência é o meu emprego ou obrigação.
Em primeiro lugar, quero informar que não lucro com nenhuma das minhas lutas, nem sequer através de subsídios ou de material de apoio, porque o meu acidente foi provocado por terceiros e ainda está a indemnização e apoio, assim como a capacidade ou não para trabalhar para ser decidida em tribunal, ao fim de quase 10 anos. Consequentemente, não trabalho nem sou aposentada, não auferindo rendimentos, nem progredindo na carreira. Vivo no limbo…a minha cadeira de rodas foi-me oferecida no programa do Salvador por uma conhecida empresa, a Mobilitec, sem me conhecer, e a pedido do Salvador Mendes de Almeida, a quem agradeço profundamente, pois sem esta ação nem cadeira teria para me deslocar porque a minha anterior estava extremamente degradada. Estou permanentemente em casa, apenas saindo quando me transportam ou me levam a reuniões ou ações, porque não tenho transportes adaptados na minha localidade nem forma de os apanhar, pois devido às barreiras e à tipologia das ruas e terreno não me é permitido sair de casa. Portanto, há quase 10 anos que vivo para a família e muitas vezes só, apenas com o computador por companhia, como tantos outros. Os direitos das pessoas com deficiência surgiram na minha vida por imposição de tantas barreiras, por me sentir tantas vezes excluída, por ver tantos a sofrer…e para minha sanidade, necessitei de encontrar um caminho e uma razão de viver fora de portas. Dediquei-me a estudar leis, decretos, a procurar informação, a perguntar, a partilhar vivências e a tentar percebê-las…E fui mais além, pegando nos valores que me foram incutidos pelos meus pais e pelo que sempre defendi, embrenhando-me profundamente nesta luta, que por vezes me deixa prostrada, por me sentir inútil perante tanta adversidade. Não sou uma rocha, nem uma fortaleza, sou uma sobrevivente que escolheu viver, ao invés de ser uma espectadora da vida. É fácil? Não é, acreditem…Mas escolhi não viver a culpar os outros nem a trazer os meus problemas a domínio publico. Hoje apenas vos deixo com esta reflexão.»
E eu gostava de vos deixar a todos, caros leitores com as reflexões todas que podem advir de um desabafo destes.
E pergunto-me: Como pode um ser humano ter a sua vida pendurada durante dez anos à espera de uma decisão do tribunal?
P.S.: Este texto foi publicado com autorização da autora, a quem contactei.

Comments

  1. João Paz says:

    Obrigado Noémia Pinto por estas excelentes partilha e dupla denúncia.
    De facto a justiça que pune de um dia para o outro quem rouba uma lata de supermercado deixa de lado quem não tem meios poderosos para impor a sua vontade ou seja quem mais dela precisaria se ela fosse para todos e não só para a classe que domina.
    Dupla porque é sempre de menos a denúncia da segregação de que são vítimas as pessoas com deficiência (motora neste caso).
    A partilha de uma atitude corajosa e solidária através de uma rede social que o MST desconsidera de forma primária vale pela atitude em si e por deitar por terra os preconceitos desse “senhor”.
    Obrigado pois.

  2. João Paz says:

    Obrigado Noémia Pinto pela partilha e pela dupla denúncia.
    Partilha através de uma rede social que MST desconsidera de uma forma primária (provavelmente porque teme que a sua abrangência lhe retire campo para a sua manipulação contínua a favor da corrente principal que nos destrói) e partilha de uma opção corajosa de solidariedade.
    Denúncia da (in) justiça que temos e que é célere a castigar quem rouba uma conserva no supermercado mas que deixa a sua mercê quem não tem os meios poderosos de impor a sua vontade (justiça da classe dominante).
    Denúncia ainda da segregação de que são vítimas os cidadãos com deficiência (motora neste caso) e que nunca será demais denunciar enquanto persistir.
    Obrigado pois.

  3. Paulo Sarnada says:

    Noémia, simplesmente inconcebível!? Como pode uma decisão demorar tanto tempo!!!?
    Nós sabemos e muitoas vezes, por experiência própria que os tribunais não fazem justiça porque as suas decisões são baseadas no Direito que muitas vezes é “torto” de Justiça, mas é Direito, ou seja é a norma feita pelo tal “legislador” a quem emprestamos a nossa representação mas que a usa para impor o domínio da chamada “classe dominante”, leia-se, nestes tempos, “a classe com dinheiro.”
    Seria oportuno perguntar. Se a pessoa em causa fosse familiar ou amiga de alguém poderoso a decisão ainda estaria por tomar? Não creio! Mas isto é apenas um problema meu de fé, sim, fé da pequenina, não da grande (FÉ).

    Os bárbaros aindam por aí à solta…

  4. A Noémia não conheço mas a Manuela sim. De carne e osso, desde que era menina com os seus caracóis loiros inimitáveis.
    Sempre foi doce, correcta e educada, de uma simpatia e simplicidade contagiantes. Um ser humano em toda a sua amplitude e dignidade. Não a vejo há muito tempo. Tanto, que nem sabia o que lhe tinha acontecido, não fosse a referida rede social nos ter feito cruzar de novo há algum tempo atrás. Fiquei muito triste e o caso dela é daqueles que nos fazem duvidar da justiça divina. Pior que isso, é fazer-nos enfrentar, dura e crua, a injustiça humana. Não há dignidade neste país! Já não há Homens, nem leis…há um amontoado de “iluminados” que vomitam o que lhes apetece e se fazem valer do poder que têm para favorecer, sempre, os seus, os ricos e os filhos de fulano tal.
    A Manuela é filha de um ilustre Sr., mas ele não é ministro nem administrador de nenhum grupo ou multinacional.
    A Manuela é minha amiga e eu desejo-lhe todos os dias que se faça justiça. Ela merece, como aliás a merecem todos os injustiçados neste país.
    O meu obrigada à Noémia pela sua publicação. Bem haja!

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