Património e patrimóino

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Tanta água passou debaixo das pontes e a direita portuguesa, através dos seus opinantes, na hora da verdade,mostra o ar castiço e reaccionário que lhe é atávico, afastando-se de qualquer réstia de cosmopolitismo com que alguns dos seus raros letrados insistem abençoá-la. A discussão a propósito da venda dos quadros de Miró patenteou até à obscenidade esta alma pequenina.

Pulido Valente escreve, no Público, um texto confusamente bronco em que, após exorcizar a ignorância do povo a que, com náusea, pertence – tentando mostrar que mais de 99% da população,designadamente os jovens licenciados, em relação aos quais parece nutrir um ódio especial, não faz ideia de quem é Miró e, a bem dizer, não sabem nada de nada -, alinha umas confusas linhas com considerações sobre se o pintor catalão tem alguma importância na história da arte em Portugal.

Concluindo que não, não tem, então despachem-se os quadros, já que só nos interessa o que é nosso ou teve, na vesga perspectiva de VPV, importância no estímulo à criação nacional –título que, claro, só deveria ser conferido após determinação de VPV. Nada interessa o valor intrínseco da obra de arte.

Lobo Xavier, perorando na Quadratura do Círculo não andou longe disto, embora num estilo mais vendedor de banha da cobra – que, geralmente, encontram clientes, note-se -, indignando-se,até, por pintores “nacionais” como Amadeu de Souza Cardoso estar praticamente ausente dos museus portugueses.

Como estes parolos gostam de dar um ar modernaço que ilustre o ostentar de um patriotismo de pechisbeque! Lobo Xavier – administrador, por obra e graça do alto, da fundação de Serralves – ignora o esforço da Fundação Calouste Gulbenkian na aquisição, logo do início do projecto do Museu de Arte Moderna, de um importante acervo de obras de Amadeu, as mais importantes das quais estão expostas em permanência.

Também omite, o comentarista, as malfeitorias que o seu governo de burgessos vai cometendo nestes domínios, de que é exemplo o lamentável caso da pintora Paula Rego (que é portuguesa, mas não suficientemente, pelos vistos). E é este o tom que a conversa vai tendo: património é o que os antepassados nos legaram nas várias artes, desde que sejam respeitáveis – as obras e os antepassados, claro. Os estrangeiros e estrangeirados que vão para longe.

Assim – e sem me meter por outras artes – logo aparece alguém a garantir que património são os Jerónimos, a Torre de Belém, a Batalha, Sta. Cruz de Coimbra, a Sé da Guarda, Mafra, os castelos com as suas próteses dentárias, Sintra e os seus castelos e palácios altaneiros, Grão Vasco, Nuno Gonçalves, Malhoa, Columbano. E mais alguns, a maioria dos quais pintam, valham a verdade, coisas que o presidente da República não percebe, o que, desde logo, os torna suspeitos de influências da estranja.

Mas o tom é este. Todavia, se vamos por este caminho, a coisa complica-se. Se, por absurdo, resolvêssemos mandar lá para fora, a fim de realizar verbas e purificar a raça e a paisagem, o património de autoria estrangeira que há por cá, descobriríamos, espantados, que as obras de que foi autor o francês Boitaca fariam voar, entre outros, os quatro primeiros monumentos da nossa lista, ficando só uns bocados desordenados. Também não escapavam as esculturas já que, se despacharmos os trabalhos dos franceses João de Ruão e Nicolau Chanterene, ficamos desfalcados, até, dos túmulos dos nossos dois primeiros reis, para não falar nos portais, altares e estatuária por eles espalhados por esse país fora.

Isto para não falar em Mafra, do alemão  Johann Friedrich Ludwig e dos numerosos escultores italianos que para ali trabalharam, ou dos acrescentos um tanto caricatos que desfeiam os Jerónimos da autoria de um cenógrafo alemão do S. Carlos. E dos estrangeiríssimos jardins e palácios de Sintra, paisagem classificada da criação de um rei teutónico – D. Fernando -, homem culto e de bom senso e bom gosto.

Na pintura, voariam dos museus – excepto da Gulbenkian, claro – alguns dos seus tesouros, começando, por razões de rentabilidade, pelo Hieronymus Bosch do Museu de Arte Antiga e, a partir daí, um movimento migratório de quadros comparável ao dos jovens licenciados. Nem se safavam os da francesa Vieira da Silva e seu marido, o húngaro Arpad Szenes. E se o governo acciona a preferência na compra da colecção Berardo, as leiloeiras não vão ter mãos a medir, já que nela abundam autores oriundos dos mais bizarros e suspeitos países. E por aí fora, até ao deserto final.

Resta-nos, no fim, cantar, num fadinho – que também é património! -, a nossa vil desgraça – desde que o fado não seja da autoria de Alain Ulman que era afrancesado e, para cúmulo, judeu e comunista, razões pelas quais o mui castiço e português Tóino Salazar o expulsou do país.

Comments

  1. Joseph Coast says:

    Excelente post.

  2. A treta típica do progressista modernaço, ufano do seu desprezo pelo economicismo, provavelmente confortado com uma fatia de um qualquer orçamento público.
    Impante por se acreditar voltado ao futuro, dá ao passado o lugar que lhe compete entre o desprezível e o anacrónico enquanto refocila em tricas do que o presente define como o correcto entre os da sua igualha!
    E vai ao passado buscar um Dali em que julga rever-se, tomando por originalidade o que mais não é que parolo seguidismo dos que julgam alcançá-la por mera oposição ao senso comum.

  3. José Maia / Porto says:

    Em nenhum momento, VPV ou Lobo Xavier disseram perto do que o ignorante e mentiroso autor do post refere. Um puco de seriedade sfff.

    • José Gabriel says:

      Deixando de lado o facto de o sr. José Maia apelar à seriedade depois dos insultos que aqui deixa e resistindo a enviar para o lixo – onde merecia ficar – o seu comentário – dou-lhe razão num ponto: eles não “disseram perto” do que eu refiro. No caso do primeiro, disse muito pior. O texto é público – e do Público – e qualquer um o pode consultar desde que resista bem às náuseas. O caso do segundo é mais subtil – pelo menos ele tenta – mas não muito diferente na substância, mau grado o “namoro” que fez à boa intervenção de Pacheco Pereira nesse programa. Também ali se ilustrou o facto de, para ser administrador de Serralves, é preciso “conhecimentos”, mas não conhecimento. Está tudo no último Quadratura do Círculo para quem se queira dar ao trabalho de ver e interpretar.

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