As botas, o futebol e os livros

Os tempos que se seguiram ao 25 de Abril, foram de grande ânimo para a criançada da aldeia, onde a luz ainda não chegava a toda as casas e muito menos a água canalizada.

Essa recolhia-se na “bica”, com “canecos” de um plástico azul grosso, tarefa que era deixada para os mais pequenos, assim que conseguiam provar ter força para tal.

Para além das idas à bica, a mando dos pais, onde para animar os dias se faziam verdadeiras batalhas de água, que, ao chegar a casa, davam direito a umas boas chineladas, o tempo corria muito devagar.

O Verão, o estio, era o período do ano mais longo e chato de atravessar, com os seus dias grandes e de calores como nunca mais vi, já que a aldeia ficava no fundo de um vale, onde só ia quem tinha que ir, pois não era zona de passagem, para nenhumas das “terras importantes” das redondezas.

Na colectividade, cujo edifício naquele tempo já existia, mas que não passava de um pavilhão para realizar um baile por mês, começaram a aparecer, aos fins de semana, grupos de “gente de fora” (“as brigadas de alfabetização” ou como lhe chamavam na terra “as brigadas culturais”), que projectavam filmes, tentavam fazer debates e “educar” os autóctones, com longas explicações, pouco entendidas – parece-me – “que depois da revolução, quer os homens, quer as mulheres tinham os mesmos direitos.”

E para provar essa teoria, nada melhor que, durante a semana, reunir toda a criançada da aldeia, naquilo a que chamávamos “aulas de educação física”.  E foi nessas “aulas”, que a cachopa de 9 anos, com a mania que era rapaz, soube o que era o basquetebol, o andebol, a ginástica com plintos improvisados e outras coisas que tais.

A vontade dos pais em deixar-me ir não era muita, mas nada que fosse impeditivo para participar nas actividades pois quando davam pela minha falta, já eu andava perdida no meio dos rapazes, a correr de um lado para o outro, com os cabelos desgrenhados e as malfadadas botas ortopédicas que, até aos 16 anos, o bom do “pé chato” me obrigou a usar.

Mas, o mais estranho de tudo aquilo, é que eu era a única rapariga, no meio dos colegas rapazes (que estavam em grande maioria nas gentes daquela geração), já que as outras meninas, sempre bem comportadas, com os seus vestidos e saias de pregas engomadas, eram fechadas em casa a aprender a fazer croché  para começarem as colchas de renda para enriquecer o enxoval, peça fundamental que tinha que começar a ser feita na infância (deve ser por isso que ainda hoje odeio colchas!).

Dos meus vestidos e saias há muito que rezava a história. Odiava aquelas coisas chatas, que me faziam sentir imenso frio nas pernas durante o Inverno, não davam jeito nenhum para saltar ao eixo, e deixavam mostrar as cuequitas, coisa que era motivo de gozo, entre os rapazes (mas essa das saias há-de ser motivo para outro texto).

Então, lá andava eu, com as “Levis” de ganga (raridades para a aldeia), que os pais traziam da Alemanha e, com os calções feitos pela tia, sempre calçada com as famosas botas rijas, de sola grossa, por dentro e por fora, a educar o corpo e a aprender as regas de jogos de equipa, que, por me fazerem correr, me davam uma alegria incomensurável e que para todos nós, fruto daquele “buraco” onde pouco chegava, eram coisas novas de que nunca tínhamos ouvido falar.

O problema todo surgiu no dia em que, os que vinham de fora, formaram as duas equipas de futebol, para, naquela tarde, nos defrontarmos uns aos outros.

Os rapazes, já habituados, a jogatanas, no largo da festa, onde eu morava, não queriam que eu entrasse.

Instalou-se a confusão!

O mais contestatário, e que tinha pretensões de um dia ser como o Garrincha, até pela forma das pernas, era o Rui, um rapaz muito pouco inteligente e que mal sabia ler, apesar de, como todos nós, frequentar a escola primária da aldeia, onde até se enchiam as duas salas, tantos eram os fedelhos naqueles tempos.

“- Se ela entrar, assim eu não jogo!” – disse. E os outros seguiam-no, porque se ele não jogasse, os outros também não.

Então lá se seguiu um discurso do “Professor” sobre igualdade entre as oportunidades dadas aos meninos e às meninas, que acabou por surtir efeito e obrigar os “machões” dos 6 aos 12 anos, a integrarem-me numa equipa, com a única cedência de que não podia ficar na do Rui.

Ele não aceitou bem, mas outra solução não houve.

Pelo meu lado, a minha raiva era tanta – e logo eu que nunca fui mulher de me calar muito, nem de esquecer das que me fazem (e muito menos em cachopa) – que, jurei a mim própria, que o “Garrinha” da aldeia, me havia de pagar aquela vergonha toda.

O jogo lá começou, com os golos possíveis, entre as balizas marcadas por pedras. Mas às tantas as minhas “canelas” já estavam esfoladas demais para suportar a coisa, fruto dos ataques masculinos, que apesar de terem “engolido” o discurso da igualdade, não o levaram a sério e me elegeram como o alvo preferido para as “caneladas”.

– “Se me voltas a dar um pontapé vais pagar por todas!” – disse-lhe, já com a paciência em ponto de rebuçado.

– “Ah! Ah! Ah! Estou para ver isso” – respondeu ele, fanfarrão, sem saber que tinha acabado de acender o rastilho da vingança.

A bola foi lançada de fora de linha. O Zé aparou-a com o pé, calçado com umas sapatilhas brancas de ginástica, como todos os outros. De um lado lá fui eu em direcção à bola e, do outro, o meu “amigo” Rui.

– “Vá, vai lá!”- disse-me ele, no mesmo  tom desafiador, quando estávamos os dois sozinhos, um de cada lado da bola.

– “Ai podes ter a certeza que vou!

E podem acreditar, como nunca tinha feito até ali, lancei o meu pé direito, calçado com a bela da bota ortopédica, com toda a força que tinha e conseguia, contra a perna do Rui.

– “Estás a ver como já está!” – respondi eu cinicamente, enquanto ele, contorcido de dores, rebolava no chão de terra vermelha do recreio da escola primária.

– “Ai que este já se aleijou!” – diziam os outros de fora, que pouco tempo depois, e avisada a família, o metiam dentro de um carro e o levaram para o hospital mais próximo.

Está visto que o jogo acabou logo ali.

O dia acabou por correr com grande preocupação da mãe do rapaz, muito amiga da minha, que decidiu abancar lá por nossa casa, enquanto esperava pelo seu filho único – o “riquê menino” – e aproveitou para me chatear, o quanto pôde e a sua consciência deixou, por eu ser uma “Maria Rapaz” desajeitada. “Ai Jazus, o qué que fezeste ao mê Rui!” – repetia quase como uma ladainha, como aquelas do Terço rezado, pelas beatas, na igreja ao fim do dia, durante todo o mês de Maio.

Fruto de todo aquele arrazoado de desgraças, na minha cabeça, os remorsos foram aumentando e ganhando uma forma tal, que, quando o Rui, já noite fora, chegou com a tíbia coberta de gesso, e sem nada onde se apoiar, já eu estava cheia de pena dele e da força do pontapé.

Mas sabem que mais?  Foi um, resto de Verão excelente.

Todos os dias, lá ia eu, religiosamente, para casa do Rui, bem próxima da minha, onde ele passava os dias na cama, para lhe fazer companhia, fruto daquela culpa que carregava.

Para além do “Sabichão”,  levava os meus livros dos Cinco, dos Sete, os Asterix (que tinha em alemão) e o “Cabeça, Coração e Estômago”, do Camilo Castelo Branco (que um resistente anti-fascista lá da zona me tinha oferecido e que lhe li vezes sem conta, mesmo não percebendo muito do que lá estava escrito).

Foram tão bons esses dias de inocência e de catarse da culpa.  Conversámos tanto, mas tanto, que acabei por fazer um amigo, que desde aí, e durante muitos anos, assumia a minha defesa em todas as confusões em que me metia.

Além disso, aquilo que recordo ainda hoje com mais ternura, o Rui, passou a ser o meu companheiro na biblioteca da aldeia, ajudando-me a explorar todos aqueles livros velhos, uns com cheiro a bafio, outros com aquele característico cheiro que, até hoje, ainda me faz salivar. E já para não falar das nossas “aventuras” nas longas visitas ao velho carro vermelho da Gulbenkian, onde entrávamos assim que ele chegava ao Largo e de onde só saímos, depois me revolvermos tudo o que havia a revolver, quando o motorista tinha os elásticos esticados em todas as prateleiras e nos prometia voltar dali a duas semanas.

Comments

  1. Nuno Gonçalves says:

    Gostei sobretudo da bela da bota ortopédica… eram lindas!!!
    Felizmente não tive de usar, mas se tivesse, seguramente se iriam tornar em “armas de destruição maciça”… de canelas!

    • marés vivas says:

      Gostei é para continuares são tempos dourados os descritos! Beijinhos

  2. Fernando Santos says:

    Que raio de modo de fazer amigos …livra!
    🙂

  3. João Candeias says:

    Já nessa altura eras uma mulher de armas! Gostei muito.

  4. mario carvalho says:

    muito interessante e para reflexão !!!

  5. Rute says:

    Muito bem….tens um dom já vi!!
    Sua “maria rapaz”…..fizeste um grande amigo nessa altura 😉

  6. Nuno Viegas says:

    que belo texto! Que venham as equipas mistas 🙂

  7. Outro belíssimo texto. Parabéns e continua que tens dom!

  8. São says:

    Supreendente! Mas de ti não espero outra coisa! Beijos.

  9. Gostei imenso.Não conhecia os seus escritos, mas fiquei fã.Parabéns.

  10. Gostei muito, prende a nossa atenção do princípio ao fim… Escrito com humor…venha outro!

  11. Ana Amorim says:

    Como é bom ler “memórias” descritas de uma forma fresca e tão vivas na tua mente. Como era tão diferente a vida dos jovens da aldeia, comparativamente aos da cidade, antes e depois do 25 de Abril. Ao ler este texto sinto uma certa nostalgia, diria até uma certa “inveja” por não ter esse tipo de memórias ou mesmo um outro tipo de memórias, porque na cidade grande as coisas eram vividas de uma outra forma, tal como as raízes que perduram ao longo da vida de quem nasceu ou viveu na “terra”.
    Obrigada pela tua partilha…Continua, estás no caminho certo!

  12. Ah, o que eu odiei as minhas botas ortopédicas! Mais uma óptima crónica, parabéns.

  13. Nuno says:

    Adorei este magnifico e sublime texto. Naveguei nas recordações de infância. Numa infância feliz. Em que se brincava na rua e se dava chutos nas pedras com as botas ortopédicas porque eram um peso enorme. Obrigado por este momento maravilhoso! Sou teu fã. Vou continuar a ler os teus textos. Obrigado.

  14. Maria João says:

    Gostei revi-me continue com as memórias :-):-)

  15. Paulo Freitas says:

    Excelente Estória. A fazer-me lembrar a minha infância.
    Obrigado, também por isso.

  16. António manuel R. de Morais says:

    Minha querida, descobri hoje uma escritora que desconhecia e foi a primeira vez que aterrei no teu blogue. Não sei bem do que mais gostei, se da escrita escorreita e tão viva se dos conceitos que deixas transparecer e tanto me agradaram. Sabes, também eu fui menino de aldeia, pois a minha mãe a professora da terra, vivia lá e esse viver deixou até hoje vincos de personalidade, memórias das jogatinas que descreves e onde eu, com 2 “pés esquerdos” só jogava à baliza (até ao 1.º golo) por ser o filho da professora.
    Que saudades…e que bom é ter memórias. Continua e vou passar a seguir-te com a atençaõ que mereces e me soubeste despertar.

  17. Hermínia Gomes says:

    Maria, adorei rever os meus tempos de escola e de infância neste texto maravilhoso. Crescer numa pequena aldeia é um privilégio! Existem cheiros, sons, momentos de silêncio e luz memoráveis. Que bom foi estar aqui e aquecer o meu coração com as tuas memórias nas quais me revivi! Obrigada Maria, continua a partilhar connosco os teus pedaços de vida, a tua escrita leva-nos a viver esses momentos tão teus, como se lá estivéssemos estado. Quero poder continuar a ler-te, bjs.

  18. fátima says:

    Estou muito comovida com o texto que publicastes… Velhos tempos na nossa aldeia, tempos saudáveis em que podíamos brincar uns com os outros… hoje só hipocrisia… Parabéns amiga continua.

  19. Mia carvalho says:

    Gostei muito. Que saudades…..
    E a bela da bota ortopédica…
    Obrigada.
    Continua com as memórias. Bjinhos

  20. Cada pessoa transporta em si os segredos da sua infância, quem sabe começou ali o gosto pelas letras e pela escrita. Gostei!… Um abraço.

  21. Inês Soares de Castro says:

    Excelente texto! Parabéns à autora! Bjs

  22. Anabela Marques says:

    Adorei a revolução cultural! E, mais uma vez, o contexto da aldeia, que me é tão querido. E o crescimento… nada de princesas! Entendo muito bem. Gostei muito!

  23. Rogério Marques says:

    Gostei muito. Tens uma escrita agradável de ler. Continua! 🙂

  24. Mónica says:

    Adorei o texto <3 está tão "realístico" que a mim pessoalmente até me emocionou 😉 tele-transportou-me para outros tempos, para outras gentes outros cheiros que guardo com amor e alguma saudade 🙂 Ainda hoje estive na aldeia onde passei parte da minha infância e encontrei gente e família que continuam a viver a vida como o faziam há 30 anos atrás de forma simples e tranquila…lindo.
    Obrigado pelas belas recordações que acabei de reviver … keep going 😀

  25. Paulo Caiado says:

    Gosto tanto de ler estas recordações de infância… 🙂 mesmo quando não são as minhas. Mas tu escreves de um modo que parecemos estar a participar nessa tua visita ao passado. 🙂

  26. Foi quase como estar lá a ver 🙂 boa narrativa 🙂

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