Aquilo a que chamo o meu bairro, um raio de imprecisas centenas de metros ao redor da minha casa e que se vai alargando todos os dias, tem a sorte de ter a melhor livraria do Porto. Não tem letreiros luminosos, nem é bela como a outra, onde as camionetas despejam turistas aos magotes para fotografarem o cenário do feiticeiro Potter, mas em que os livros mais parecem adereços para emprestar credibilidade a esse cenário. E é tão discreta que podem passar-lhe a porta e nem repararem nela. É um espaço sem pretensões estéticas, sem top de vendas, de aspecto austero, com paredes a precisar de uma demão de tinta, escaparates de madeira tosca e estantes muito antigas. E acolhedor, apesar disso, sem sofás nem ar condicionado, com a rádio, lá ao fundo, sintonizada na Antena 2, e um livreiro que vos deixa em paz se assim o preferirem ou conversa convosco com gosto, se a isso estiverem dispostos.
Se o leitor se sente aqui tão bem, avento eu, será porque nela se respira a inestimável liberdade de uma livraria que se borrifa nas listas de mais vendidos, nos autores da moda, nas estratégias empresariais. E por isso o que vemos à venda reflecte uma escolha, não de grupos editoriais ou de gurus do marketing, mas de um livreiro que tem um projecto que, mais do que comercial, é um projecto de vida. Chama-se Utopia.
Caberia a Herculano Lapa, o autor deste projecto, o homem que vos receberá se por lá passarem, explicar o que o move, mas quem por lá passa vai percebendo que esta livraria, com estantes onde cabem anarquismo, surrealismo, marxismo, economia alternativa, ecologia, dadaísmo, poesia, filosofia, é um espaço de liberdade e de libertação. Ironicamente, mesmo ao lado de um quartel e de uma igreja. Mais do que um alfarrabista, que também é, é uma livraria onde se descobrem livros raros, esses que nunca se encontram nas grandes livrarias, de pequenas editoras independentes, projectos de autor, tudo o que não passa no grande crivo do mercado e das suas exigências.
Não se espantem se virem entrar na loja, como já vi eu, uma senhora já avançada em anos, com aspecto formal, e que avança para o livreiro para pedir-lhe que lhe mostre tudo o que tiver de Bakunin e Proudhon. E que esse mesmo livreiro, que ainda há pouco podia discutir ardentemente anarco-sindicalismo, se dedique a seguir a recomendar, com uma paciência e um cuidado que me emocionaram, a um jovem com síndroma de Down, um romance que o apaixonará.
Gosto de gente que põe, como diz a celebérrima ode, quanto é no mínimo que faz, como se disso dependesse a salvação do mundo, como se nunca se pudesse saber qual dos nossos mais pequenos gestos poderá transformar este mundo. Costuma ser gente que não aspira à notoriedade nem às riquezas do mundo, mas a sentir que é inteira e que o que faz para ganhar a vida vai de mão dada com o que é. E é isso que eu julgo ver nesta livraria, e em quem a mantém, e deve ser também por isso que me desvio muitas vezes para, pelo menos, ver o que o livreiro escolheu para a montra, e me atraso tantas vezes porque não resisto a entrar.
Tomem isto como um anúncio publicitário (não, desconfiados, não ganho nenhuma comissão) ou conselho de amiga: visitem a Utopia.
Passei muitas tarde nesse lugar de pensamento livre. E deliciava-me sempre com ironia de passar pela entrada do quartel com mais um manifesto anarquista na mão. Tinha 17 anos. Tenho de voltar lá: à Utopia e à Anarquia.
Nem sabia que ainda se encontra aberta.
Tenho um exemplar da revista Utopia Nº 9 Primavera Verão de 1999 que foi adquirido nessa mesma livraria por uma Rita que não Ribeiro (num me digas que casaste hehe ) que me a emprestou e nunca mais devolvi.
Velhos tempos, e tenho pena de na altura não dar a devida importância e tempo a compreender o anarquismo e a Rita.
Não era eu essa Rita de que fala, mas está na altura de lhe devolver a Utopia – a nº 9 – e de lhe dizer o quanto se deliciou com a sua leitura.
Concordo com a Rita 🙂
Na verdade não fiquei com a revista intencionalmente, foi passando o tempo e com isso o distanciamento entre nós.
Ela tem Cd´s meus e eu dela (nossos quero dizer) tal como livros, resquícios de uma relação tumultuosa mas muito compensadora, aprendi muito com a Rita.
Não é um comentário; é um pedido: eu, que não vivo no Porto, peço para publicarem o endereço da livraria pois não sei se, pedindo a um taxista para me levar à Utopia, terei muito sucesso.
Obrigado.
Os taxistas do Porto poderiam surpreendê-lo, mas não tentemos a sorte: Rua da Regeneração, n.º 22, à Praça da República. Só a morada já é um manifesto.
Obrigado
Para além da Utopia, lembrar, também no Porto, a Poetria, situada na entrada das Galerias Lumière, mesmo em frente ao Teatro Carlos Alberto, uma livraria dedicada essencialmente à divulgação de poesia, e desligada das lógicas mercantilistas.
Bem lembrado, Tiago.