Que Europa?

Há trinta anos, ser europeu era a melhor coisa do Mundo. Na Europa, os homens podiam ser homens, dizia-se, ou pelo menos pensava-se. Nela, lugar natural dessa humanidade,  os homens podiam cumprir o seu mais interessante programa da espécie, dizia-se, ou pensava-se, nessa convicta e secreta superioridade pós-colonial, nós homens (e mulheres, naturalmente) com caminho feito pelas estradas nacionais dos impérios e pelos caminhos de cabras dos lugares que havíamos colonizado quando ainda éramos bárbaros, íamos realizar a Europa da fraternidade.

Embora ainda um pouco tosca, de fundamentos demasiadamente metafísicos para um projecto daquela envergadura, nessa Europa ainda por construir, quase só palavras de discursos, de intenções enunciadas diante do aplauso esperançoso dos povos, os líderes europeus iam fazer um mundo novo. Há trinta anos, ajudar a fazer um mundo novo, apostando nele às cegas, era a melhor coisa que podia acontecer-nos. Desafio aventuroso, o melhor que se pode receber da vida aos vinte anos. Fazer um mundo, não fazíamos por menos, sempre nas grandezas (mas há nisso grande poesia, na elevação do impulso certo).

Os países europeus eram muito diferentes entre si, e eram as suas linhas de fronteira que o diziam, diferenciando territórios que evoluíam na diversidade dos habitantes neles fixados, todos diferentes de que era preciso fazer irmãos iguais. Queríamos ser iguais. Iguais a quais? Como fazer semelhantes de dissemelhantes? Logo se via, um espaço comum de circulação livre, uma moeda única, logo se via como se resolveriam as diferenças de desenvolvimento, o mercado único produziria soluções, o comércio tem recursos de engenho, a criatividade humana não conhece limites, não repetiríamos erros pretéritos, tínhamos aprendido a lição, dizíamos, ou pelo menos pensávamos, nós, esses que acreditavam no projecto europeu como outros (por vezes esses mesmos) em Deus.

Deus morrera talvez, mas não nós, a sua criação espantosa (nós sempre lá no alto da cadeia alimentar das criaturas de Deus, a olhar lá para baixo, para os outros animais, como a Fortuna no cimo do monte para os que se abalançam a subi-lo), a criatura sobrevivia ao criador, afinal éramos homens caramba.

E é também por isso que olhar agora para a Europa, para o que fizemos ou deixámos que se fizesse nela, é uma visão dolorosa. Na Europa dos iguais, as diferenças acentuaram-se. Não somos iguais, nem fazemos por isso. Não somos irmãos. O rolo compressor que apagou as linhas de fronteira esmaga agora os mais fracos, os alemães anunciam ter perdido a paciência com os gregos, os franceses evocam o que sempre pensaram dos portugueses, os ingleses não querem mais imigrantes cheios de problemas, o sul cheio de pobres (que ajudaram a empobrecer) pesa-lhes, somos um fardo, ainda por cima de ortodoxos da Europa, sempre a puxar dos galões da sua História de civilização.

A que líderes entregámos a Europa? Que Europa permitimos que fizessem? O que é a Europa que hoje conhecemos? Não era nada disto em que pensávamos há trinta anos, pois não? É por isso mesmo que a palavra resistência tem hoje novamente um lugar fundamental na História da construção do ideal europeu, projecto claramente ameaçado pela prevalência de interesses outros, e designadamente de coligações de interesses locais, como está a acontecer na Alemanha dos exílios interiores, onde dois partidos ainda ontem rivais, com posicionamentos eleitorais distintos relativamente à Europa, assinaram em Novembro passado um vergonhoso pacto anti-europeu.

Comments

  1. João Paz says:

    Embalámos nos cantos de sereia do império alemão. Agora, sobretudo através dos efeitos preversos do Euro pagamos as favas.

  2. Não me considero europeísta. O meu cepticismo começou com Maastricht e aprofundou-se na oposição que assumi ao Tratado de Lisboa. O Euro, para lá dos aspectos negativos, tem no entanto um lado positivo, impossibilitar os políticos que nos (des)governam de empobrecer os cidadãos desvalorizando a moeda por decreto. Sempre foi mais fácil colocar as rotativas a imprimir, que praticar uma política de rigor nos dinheiros públicos. Mas gostaria que o rigor fosse uma exigência dos portugueses e não do cartel de Bruxelas…

    • Nightwish says:

      Ainda não percebi onde está o rigor destas políticas que ficam a milhas de qualquer previsão.

    • Tem razão, mas a questão é quando foram cumpridos os critérios de convergência para a entrada na moeda única (no governo Guterres) alastrou-se uma crença muito perigosa em São Bento que fazia acreditar em todos os actores intervenientes no processo que a partir do dia de entrada na moeda única, partindo do pressuposto que avizinhava uma total interligação entre as economias participantes (um perigoso post-huc do género “se eu cair, ou me ajudas ou cais comigo) tudo nos seria permitido dali em diante bem como tudo nos seria rapidamente socorrido…

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