De quem é amigo o Tribunal Constitucional?

tribunal constitucional
Está no senso comum, alimentado pelos aflitos, por um lado, e pelo governo, por outro, a ideia de que o TC é o paladino do povo contra os abusos do governo, o aliado dos oprimidos. A guerra obscena e politicamente perigosa que os nossos governantes desencadearam contra este órgão jurisdicional parece dar razão a esta impressão. Ora, o Tribunal Constitucional não tem de ser amigo de ninguém; tem de ser justo – justo de justiça, não de justeza.

Por mim, bastava-me que o TC avaliasse com a isenção e objectividade possíveis as questões que lhe submetem. Penso que ninguém espera que ele se transforme num negativo do governo e invada as áreas de competência de outros órgãos de soberania, como proclama o governo, dantes com a sobriedade de quem bebeu meia garrafa e, agora, com a boçalidade de quem bebeu a caixa inteira. O que, bem vistas as coisas, acrescenta a este governo mais um atributo a juntar a todos (negativos) os que já mereceu: a ingratidão.

Na verdade, à questão de saber se o TC já se pronunciou para lá das suas estritas competências, a resposta é sim. Correspondendo ao golpismo parolo do inquilino – às nossas custas – de Belém, o TC tem alinhado nas demoras da decisão, no seu ajeitar salomónico, nas justificações em nome das “necessidades” que impõe a situação política. Assim, preceitos julgados inconstitucionais vêem, por sugestão do TC, adiados os seus efeitos, pelos “inconvenientes que a sua aplicação retroactiva acarretaria” – o que é o mesmo que dizer que as medidas são ilegais mas podem ser aplicadas, a coberto de um “realismo político” que serve sempre os mesmos e poupa ao estado milhares de milhões de euros-, isto para não falar na ligeireza com que foi tratado o esbulho feito a funcionários públicos e aposentados, sujeitos a cortes que nada têm a ver com a noção de redução da despesa e tudo a ver com um imposto aplicado, selectivamente, a segmentos da população, o que é ilegal, ao mesmo tempo que outros, de óbvia inconstitucionalidade – o assalto aos pensionistas foi considerado inconstitucional por todos os especialistas – passam com justificações pouco rigorosas.

Agora mesmo, o TC poupou, ao afirmar que a inconstitucionalidade dos cortes de salários só tinham efeitos a partir ado mês que vem – isto é, a mesma coisa metade do ano é inconstitucional, outra metade não é – centenas de milhões de euros ao governo (quem é amigo, quem é?). Ora, estas considerações relevam da gestão política e económica e não das competências específicas do TC. Portanto, o governo devia estar agradecido. Mas não. Ébrio de poder, como acontece com os autocratas medíocres e os homens mal formados, o governo quer mais. Quer tudo. Nem sequer agradece as atenções dos seus amigos do TC.

Por esta altura já estou a ouvir os vossos reparos, a acharem que o ingrato sou eu. Não pensem nisso; apesar de tudo, tenho todo apreço com a porção de decência, coragem e independência que resta ao TC e, como muitos de vós, estou decidido a defender a sua existência contra as tentativas, já descaradas, de o exterminar, numa brutal ofensiva que, mais uma vez, mostra que Belém não tem ninguém que vele pelo regular funcionamento das instituições democráticas. Mas também não tenho ilusões.

Comments

  1. Bento 2014 says:

    Passos já pediu aclaração ao TC , o que pode significar estar a preparar-se para bater com a porta, e a meu ver muito bem, com um bem metido pedido de demissão. Quando não há cão nem gato que não conteste a actuação do governo só tem que dizer venha o próximo. Sigam eleições antecipadas e venham daí esses sábios que com tantos trunfos na manga não nos irão deixar descalços seguramente. Entretanto vamos pedir a todos os santinhos que não nos levem até a roupa que trazemos no corpo. Não será de excluir que um dia destes andemos todos a comer constituições ao pequeno almoço.
    Mas nada de novo. O TC não é mais que uma extensão de veneno concentrado tipo bolha que brota daquela AR contaminada até aos ossos. Mal por mal, as decisões do TC só deviam produzir efeito quando tomadas por unanimidade.

    • carlos oliveira says:

      Só um repararo: as leis são para se cumprir e nada mais. Se esse tal Passos não consegue governar com o actual quadro legal, só tem que tomar uma decisão: ir-se embora. Claro como água cristalina. Ou querererá governar sem lei, como fazem os ditadores. Cavalheiro, com troika ou sem troika, Portugal ainda é uma Democracia. Basta…

      • Bento 2014 says:

        Totalmente de acordo que as leis são para cumprir. Só que dentro do próprio TC houve quem batesse forte e feio com argumentos cortantes na decisão que foi tomada. Esta coisa da interpretação da lei tem muito que se lhe diga. Honra ao governo que contestando (um direito democrático) nunca põe em causa o cumprimento das determinações a que está obrigado.

  2. carlos oliveira says:

    A violação reiterada, voluntária e consciente da Lei Fundamental determina o fim do mandato dos prevaricadores. É a 8ª vez que estes fascistas procuram violar a lei, como qualquer gatuno de residências ou multibanco. É inaceitável que esta corja continue a governar com a benção do inquilino de Belém que, de igual forma, pactua com a ilegalidade. Sim, porque violar a Constitução é infringir a lei e por demais a Lei Fundamental. O povo tem direito à legitima defesa e ao direito de resistência, passando a desobedecer. Quando um Governo não respeita a Constituição o estado da Nação passa a deplorável. Vivo num país com um Governo fascista, trinta vezes pior que o regime salazarista que, pelo menos, cumpria as “suas” leis.

    • Bento 2014 says:

      O meu respeito pelos direitos do povo determina que uma nova constituição venha a ser referendada. Para que todas as corjas políticas que tomaram conta exclusiva do país venham a ser metidas na ordem.

      • Fernanda says:

        Uma constituição do tipo Obra Aberta à Umberto Eco ou, uma alteração à constituição do tipo cavalgada Heróica – folha de rosto edepois catapum, catapum, troc, troc, troc, aióooo….!!

        …e salta-se para a contracapa, patrocinada por 1 bebida qualquer.

        Esta sim, é uma constituição aberta, quase que escancarada.

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