A Wikipédia, os professores e Aristides Sousa Mendes

aristides e cesar

Escreve hoje no Público a professora Maria do Carmo Vieira:

Se um professor pedir aos seus alunos que pesquisem na Wikipédia informação sobre Aristides de Sousa Mendes (ASM), sem antes ele próprio ter contado a história do cônsul de Bordéus e ter levado os alunos a ler e a analisar as cartas que escreveu, apropósito do inqualificável castigo de que foi alvo, os alunos deparar-se-ão com o exemplo flagrante da desinformação e do aproveitamento político da extrema-direita racista, em ascensão. O que foi um exemplo e um acto de grande nobreza é considerado um “crime”, por desobediência.

Dois comentários. O primeiro quanto à Wikipédia. Os professores portugueses têm com a Wikipédia o relacionamento tradicional que se tem perante o desconhecido. O facto de ser uma bojarda de todo o tamanho criticar um artigo quando o que temos a fazer é editá-lo, escapa-se-lhes: é malta que ainda não saiu da idade do papel, pensa que aquilo é escrito por alguém pago para o efeito como nas defuntas enciclopédias que se alimentavam de florestas de árvores assassinadas, e assim permaneciam, sem actualização, praticamente sem escrutínio, dignas do tempo em que o saber era unívoco e monopólio das cátedras.

Uns dias atrás um amigo alemão, lusófono, o Piet, desafiava-me precisamente para uma grande campanha em favor da Wikipédia de língua portuguesa, pobre e fraquinha, precisamente porque criticar fica sempre bem, fazê-la é um aventura onde poucos se afoitam. Bem lhe expliquei que com esta geração de professores portugueses, malta que se encharca de giz onde há projectores e computadores, gente submissa à miséria da maioria dos manuais escolares e incapaz de os produzir em trabalho cooperativo, ignorante do facto de vivermos num tempo de Creative Communs e da agonia do copyright, não há grandes esperanças de atingirmos o nível, por exemplo, da versão castelhana.

O segundo quanto à entrada em si e a Aristides Sousa Mendes. A mitologia é um mal português: de um momento para o outro o homem virou herói internacional e santinho do altar. Que a entrada tem algumas falhas, terá, mas no essencial é correcta como entrada de uma enciclopédia, onde diferentes pontos de vistos devem estar expressos com imparcialidade. Aproveitar para meter ali a discussão sobre o Salazar e o anti-semitismo é capaz de não ter sido das melhores ideias, mas o sistema funciona, bastaria que Maria do Carmo Vieira tivesse lido o histórico da discussão. Recentemente foi defendida, na Universidade de Coimbra, com brilhantismo habitual na Lina Madeira, uma tese de doutoramento sobre o irmão gémeo de um ministro dos negócios estrangeiros de Salazar. Que eu saiba é o único trabalho científico que espero em breve  seja publicado. O que anda por aí publicado não é ciência. Depois de todos o podermos ler, conversamos sobre a personagem, controversa, e com um percurso no mínimo pouco recomendável. Como não li (embora conheça alguns detalhes da sua carreira de vigarista de estado), e sobre a parte essencial, os célebres vistos, desconheço, fico-me por aqui, com a sensação de que por vezes os santos caiem caem dos altares.

PS: onde escrevi os professores claro que deveria ter escrito uma maioria. Generalizar não é esconder algumas partes, mas sei muito bem do que a casa gasta.

Comments

  1. João Cardoso. Não é que concordo consigo?!

  2. Só 3 comentários: 1. Avaliar alguém (indo até ao limite de “santos que caem dos altares”) confessando o desconhecimento sobre o ponto fulcral de uma vida, mas declarando expressamente o conhecimento de pecadilhos (ou deveras infrações) anteriores, é estranho. Alinhar com a extrema-direita ultramontana e cómica na defesa indireta da política salazarista de aliança concreta com as potências do eixo (onde se inclui o processo a Aristides Sousa Mendes) é sintomático. Tudo isso sem sequer referir o que será supostamente falso ou duvidoso no suposto “mito” do cônsul de Bordéus é algo cobarde. Tem o perfume do revisionismo que lança a dinamite e foge. É feio e intelectualmente desonesto. 2. A Wikipedia pode ter todos os processos de revisão, abertos e permanentes, mas também é facto que nas várias línguas o mesmo tema é tratado de forma diferente, sendo necessário estar sempre atento a fontes e argumentos. Assim, o aviso da docente, colocada em pelourinho pelo autor de forma tão infantil, é correto e útil. A observação do autor aparenta traduzir o fascínio pela técnica e pela novidade levado a um nível quase risível. 3. Supor que um único trabalho académico, perante tudo o que a Academia e académicos, os Media e outros autores, investigaram sobre o tema Aristides Sousa Mendes, será a única revelação científica sobre um momento singular da nossa história moderna é mais do que inocente, é ignorância voluntária, decorrente de amiguismo generoso ou de sede de protagonismo, talvez, mas sempre incorreto, independentemente do valor autónomo que a tese em questão possa ter.

    • 1 – Ignoro o que está escrito na 1ª obra exaustiva sobre Aristides. Quanto à personagem, o monárquico ultramontano, já se sabe muita coisa. É ler a bibliografia publicada que as fontes documentais não desmentem.
      2. Claro que é: o artigo cita fontes, credíveis.
      3. E você supõe sobre um trabalho que não leu, o único validado academicamente, fruto de uma investigação de mais de uma década por uma investigadora séria e premiada, não pode ir para lá do que os media têm escrito, e revelar-nos outras facetas do homem; logo ficamos quites, cada um em seu supor. O tempo, depois, trata do resto, e logo se vê onde andou o revisionismo.

    • JgMenos says:

      A ameaça a um recém beatificado mártir da ‘esquerda’, desenterrado à pressa para impedir que o concurso televisivo do Maior Português de Sempre ( ou algo parecido) elegesse Salazar como de facto aconteceu, é assunto da maior gravidade!
      Tanto maior é o perigo, e consequentemente o ruído, quanto a probabilidade maior é de cair do altar o santo e emergir a acção humanitária de Salazar!
      Quanto à suposta ‘perseguição’ basta ler «O consul Aristides de Sousa Mendes» pelo Embaixador Carlos Fernandes (2ª edição do autor na FNAC).
      Quanto à publicação do trabalho da investigadora, duvido que esteja para breve, que isto de confrontar a nova hagiografia política não é coisa fácil.

      • Já tardava um filhodaputa.
        Ó filhodaputa, o 1º documentário sobre o Aristides é de inícios de 90. E o Aristides foi um vígaro que sobreviveu no MNE porque era protegido pelo próprio Salazar, que o conhecia do CADC e foi amigo do irmão. O teu filhodaputa, ó filhodaputa, tramou a vida ao Cônsul em Berlim, Veiga Simões, que precisamente pediu para salvar judeus das garras de Hitler, e foi também tramado pelos dois gémeos Sousa Mendes, monárquicos e reaccionários como o teu filhodaputa, ó filhodaputa.
        E agora, ó filhodaputa, vai até S. Comba, dá um tiro nos cornos e assim ficarás feliz ao lado do teu filhodaputa, no inferno dos filhosdaputa, percebeste, filhodaputa?

  3. Reblogged this on Pensamento e Liberdade and commented:
    Interessante artigo que ilustra um dilema bem atual que se encontra na relação entre a educação e a tecnologia e as novas mídias.

    • MIDIAS tem plural ???
      duvido – é como as minas anti-pessoal que muitos escrevem minas – anti-pessoais ?? o português é danado
      a língua – não os homens

      • Você é professora de português? Então, esclareça-nos se mídia tem ou não tem plural. Ao me referir a “mídias”, eu não quis dizer o conjunto dos meios de comunicação, mas aos recursos físicos utilizados para veicular uma informação. Na área de informática, o CD é uma mídia, o DVD é outro tipo de mídia, o antigo disquete também é, igualmente o é o disco rígido do computador, um cartão de memória, um pen drive e por aí vai…

        Está errado empregar a expressão “mídias” para esse tipo de recurso?

  4. CAIEM não se escreve com “i” – escreve-se CAEM – com “e” sr professor – não escreva mal para não ensinar ignorância ao menos na grafia – o resto é difícil de demonstrar – só os axiomas não precisam de demonstração-mcor
    CAIAR co i é com cal e caiar só no Alentejo – cair da cadeira abaixo é com “é” – a língua portuguesa é lixada mas nem os professores já sabem para eles quando mais para ensinar – pena não acha ??

  5. Pedro says:

    E assim, para mim, caiu um mito.
    Não que o valor dos seus actos possam ser questionados, pois são por demais evidentes e reconhecidos.

    Se foram 30.000 ou pouco mais de 1500, os judeus entrados em Portugal, com vistos passados por Sousa Mendes e, se, na sua maioria, seriam pessoas de meios e com posses, não interessa. O que é relevante destacar é o serviço humanitário que o Consul prestou, pois, certamente alguns desses 1500 foram salvos dos horrores que os nazis lhes tinham reservado.

    Agora, o que a sua biografia, publicada na Wikipedia (e com profusas fontes de consulta) demonstra é que o homem seria isso mesmo. Um homem como outro qualquer, com defeitos, com falhas de carácter, com tiques de aristocrata arruinado, que por uma razão superior à sua própria condição, de forma consciente ou não, conseguiu executar este acto tão nobre. E só por isso é digno de reconhecimento e de esperança. Esperança de que possam surgir outros Sousa Mendes e (nos) salvem de outros tipos de tiranos e tiranias que nos são impostas. Mas isso já não se enquadra no assunto em apreço.

    Não havia era necessidade de se ter contruido uma mentira de tal maneira estruturada, que passou a fazer parte da História como um facto, sem se terem consultado as devidas fontes para verificar a sua autenticidade.

  6. Já agora: “midias” e “midia” não existem. O termo é de origem latina e não inglesa. É “media”, plural, e “medium”, singular.

  7. Mário Machaqueiro says:

    Impõe-se, de facto, uma investigação historiográfica isenta para esclarecer, de uma vez por todas, o perfil moral de Sousa Mendes e o alcance efectivo da sua intervenção enquanto cônsul em Bordéus. É um facto que a sua figura não goza de boas graças junto do antigo pessoal do Palácio das Necessidades. Ainda há pouco tempo entrevistei um antigo embaixador, hoje com perto de 90 anos, que me disse coisas muito pouco abonatórias acerca de Sousa Mendes. O problema é que este pessoal é quase todo nostálgico da ditadura de Salazar, sob cujos auspícios fez carreira, o que retira objectividade aos seus juízos. Dito isto, fui ler com atenção o tão vilipendiado artigo da Wikipédia, e as minhas conclusões coincidem com as do João José Cardoso: parece-me feito com preocupações de rigor, procurando fornecer uma multiplicidade de dados que ajudam a compor uma imagem bem mais complexa e contraditória do que aquela que as hagiografias, provavelmente apressadas, nos andaram a vender. Que a nossa fome irracional e infantil de santos e de heróis não tolere essa complexidade só mostra que temos de crescer…

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