A honra e a bondade

Em memória do General Silva Cardoso

Não sei de nada mais sério do que a terra a que pertencemos, no sentido literal. A terra onde abrimos os olhos para o mundo, aprendemos as plantas e os animais, o sentido do vento, a água que nela brota. Podemos andar pelo mundo, mas aquela terra está-nos gravada no coração. Por ela sofremos e lutamos. Pela terra podemos até matar em situações limite impostas por estrangeiros. E a ela voltamos quando a vida se nos acaba.

Quando o General Silva Cardoso voltou definitivamente de Angola, a alma desfeita pelo que lhe foi dado ver de desonroso naquela entrega unilateral a um partido, recolheu à sua aldeia. Na Pedreira, de enxada nas mãos, cavava horas seguidas ao sol tórrido daquele ano de 1975 – como quem, de olhos rasos de lágrimas, implorasse à terra que lhe secasse a dor. Silva Cardoso não era um político, era um militar à moda antiga, escravo do dever e da honra, incapaz de traír ou mentir. Mas, precisamente por ser um homem da terra, tinha a sabedoria de compreender que há causas que não se vencem pelas armas. Era um homem de diálogo, de bom senso, de harmonia. Não discutia o direito à independência das colónias, mas sentiu-se no direito de discutir a forma como foi feita a descolonização, a que tiveram o topete e o mau gosto de chamar exemplar aqueles que, embriagados pela utopia europeia, foram tomados de uma pressa que os cegou para a necessidade de se acabar um império de 500 anos com honra, dignidade, brio e generosidade pelos povos que, qual rebanho infeliz, foram levados ao açougue da guerra civil. Demais sabia Silva Cardoso que foi pesada a herança deixada por Salazar, o político que por intolerância nunca aceitou negociar com as elites dos povos das colónias, levando o país a um beco de equívocos, e por isso pertencia à ala dos que queriam ver a situação resolvida com inteligência e sentido de estado. Tinha sido adido militar em Bonn, a antiga capital da Alemanha dividida, onde deixou dois casais de fraterna amizade, Bernhardt e Anita Pastor Fernandes Wenzel, Hans Paul e Maria da Conceição Strobl. Fez cursos profissionais nos Estados Unidos da América, onde conheceu Luísa, o amor da sua vida, nascida numa família de emigrantes portugueses. Viveu de perto com outros povos, outras culturas, absorveu o realismo necessário a quem pertence às forças militares que têm de lidar com todas as situações.

Depois do verão de 1975, veio o inverno do grande descontentamento – com multidões de pessoas, aflitas e sem norte, que os aviões vindos de Àfrica e de Timor despejavam no aeroporto de Lisboa. Aos milhares. Os hotéis e as colónias de férias rebentavam pelas costuras em todo o país. No Vale do Jamor, feito vale de lama pelos temporais, jaziam os timorenses, de grandes olhos assustados. Nenhum político por lá passava, muito menos as suas mulheres e as damas da sociedade. Mas era ali voluntária a Ana, a filha de Silva Cardoso. E mais uns quantos voluntários que acorreram ao grito de alerta do Duque de Bragança. Quando chegou o 11 de Novembro de 1975, Silva Cardoso apareceu de repente no escritório do Templário, em Lisboa. Parecia ter envelhecido vinte anos. Estendeu-me um papel e contou-me que tinha ido a casa do dono de um jornal nacional pedir que lhe publicasse aquela tomada de posição, e o democrata feito à pressa nem o convidou a sentar-se, antes o encaminhou para a porta. Um malcriadão sem alma nem fibra lusa, muito ao contrário de Francisco Sá Carneiro que, nesse mesmo dia, me deu um abraço com os olhos cheios de lágrimas. Porque o jornal tomarense já tinha saído nessa semana, fui à tipografia fazer um livreco com aquela tomada de posição e eu mesma fui entregar a molhada ao Zé do Nicola, um ardina meu amigo, com a recomendação de que não vendesse, desse a quem quisesse. Desapareceu tudo numa tarde. Depois disso, rara foi a semana que o General ou a Luísa não me convidassem para jantar. E a outros amigos, como o Cónego João Ferreira, que tinha sido meu professor de Religião e Moral no Colégio de Tomar e que, por ser capelão da Força Aérea, foi de grande apoio a Silva Cardoso nas horas dramáticas que viveu em Angola. Tive, assim, o privilégio de conhecer vários oficiais de alta patente: Altino de Magalhães, Firmino Miguel, José Valente, Vasquez, Lemos Ferreira, Pinho Freire, Gonçalves Ribeiro, Serpa de Gouveia. Pude ver como aqueles homens estimavam e respeitavam Silva Cardoso. Foi uma espécie de terapia de grupo.

A última vez que vi Silva Cardoso foi numa passagem minha por Lisboa, num 10 de Junho. Fui ver o desfile dos Antigos Combatentes. Abraçámo-nos. Achei-o desanimado. Quis saber da Luísa, dos filhos, do Serafim, o órfão negro angolano que adoptaram no seu regresso a Portugal. Quase sussurrou para me dizer que a Luísa estava doente. Sobressaltei-me. Não insisti. Soube depois que a corajosa Luísa estava condenada. Foi a definitiva machadada naquele homem atlético. E agora, foi a vez de ele partir para Deus.
Silenciosamente. Discretamente. A terra da sua Pedreira amada abriu-lhe os braços.

Bem merece a paz este homem que foi obrigado à guerra.

Comments

  1. Tiago Cardoso Castanheira Nunes says:

    Boa tarde.
    Dos muitos textos que tenho lido em memória do Gen. António da Silva Cardoso, meu Avô e Herói, o seu é dos que mais honra a sua memória, e faz jus ao seu caráter e personalidade. Faz este ano de 2014, 10 anos que a minha Avó Luísa nos deixou, sendo que estes últimos 10 anos de vida do meu Avô foram uma luta constante contra esse facto, que o marcou, deixou de rastos e sem paz. Agora, está em paz, por fim, e tenho a certeza absoluta que, onde quer que esteja, está com a minha Avó.
    Foi-me incumbida a tarefa de relatar a notícia do falecimento do meu Avô à Lusa e foi com pesar e alguma dificuldade que o fiz. A doença prolongada que referi não se refere a qualquer tipo cancerígeno, mas antes a uma doença e infeção respiratória de que o meu Avô sofria há já muito tempo.
    A Pedreira recebeu-o como ele merecia e ali repousa agora entre a família que tanto adorava.
    (Tiago Cardoso Castanheira Nunes)

    • Etelvina Gonçalves Costa says:

      Boa noite Tiago hoje surgiu o milagre que eu esperava de falar com alguém que é neto do homem mais excecional que tenho a honra de me pertencer familiarmente . Um homem que se distinguiu como ser humano e um militar que serviu a sua pátria com a dignidade que lhe era peculiar Tiago estás admirado mas eu sou teimosa e tinhas um dia que me ouvir pois eu guardo dentro de mim algo de muito importante que queria partilhar contigo . e que tenho a certeza ficarias ainda com muito mais admiração pelo teu avô .

      Realmente Tiago teu avô`não era mais um militar que cumpriria os deveres que lhe eram atribuidos para exercer suas funções especiais nem mais um um homem que servia a pátria Era um ser de exceção . Era uma alma boa um homem com o sentido da honrae do dever extraordinário um homem bondoso sábio pronto para a luta e pronto para acudir quem dele precisava , que se insurgia contra quem quebrava os valores da honradez da dignidade.,. era efectivamente um homem de enxada na mão, sabia empunhá.la nos momentos certos nunca perdendo o seu valor de homem que não se entregava a qualquer função sem saber realmente ao que ia , Tinha um sentido estético de longo alcance ai estava a sua excelência.. um valor entre muitos valores que o distinguiam. a sua sensibilidade e alta percepção Eu vivia em África Luanda na altura da guerra que não quero lembrar . e também quero ser breve no que tenho a dizer aqui não vou ser maçadora . O momento que se vivia era doloroso extravasava as forças de qualquer residente nessa terra e o medo e a raiva apoderava-se de todos os que tinham consciencia do que se passava especialmente na fase em que teu pai exercia as nobres funções de alto comissário ultimo governador de Angola não podia esse cargo estar tão bem entregue a um homem militar neste caso Sua excelência o General António da Silva Cardoso . ,sabia quem o colocou nessa missão que seria uma honra tal missão. O momento era dos piores nessa altura mas nunca houve dúvidas que seria entregue a uma pessoa com alta capacidade ,Meu pai (que é dai que vem nossa ligação familiar átravés de minha avó Maria Rosa de Sousa e Silva da Costa) conversou sobre o assunto . .e abanou a cabeça de contentamento e eu fiquei a saber melhor quem era essa pessoa. que assumia um cargo de tanta responsabilidade . tivemos consciencia que era um cargo de heroismo ,,. penso que respiramos fundo bem fundo nos nossos corações e com honra, pela pessoa escolhida.. Teu avõ já conhecia Angola bem era um homem adequado para o cargo.Nós viviamos a aflição de uma guerra sem norte e a pensar em partir . Meu pai não queria tomar a posição de regressar a Portugal e eu ainda continuava nos serviços sociais do hospital Maria Pia e ainda dava aulas .. Foi então que teu pai entrou a ajudar a dar luz as nossas indecisões Minha mãe regressa a Portugal com meu pai perfeitamente alucinado e eu fico e ainda tinha de ir trabalhar num percurso altamente perigoso cheguei a ser apanhada numa rusga de um partido mas fui salva pela tropa portuguesa Dai para a frente foi teu pai que me protegeu pelos meios que tinha através de seu staf tinha o problema da guia para vir para Portugal .foi resolvido……. ,.. , A história é longa o resto fica para te contar mas se estou viva a Ele devo Hoje ao ver a parada lembrei-me tanto de teu pai e gostaria que ele ali estivesse ao lado do presidente da Republica há muita coisa que gostaria que soubessem.. Minha mãe ia a Tomar muitas vezes nossa familia é de Tomar e trazia as noticias Meu pai faleceu tres anos depois de cá chegarmos minha mae faz douze anos ,, sempre quiz visitar -vos conhecer.vos aos dois filhos eu sabia da morte da mãe e tambem soube da morte do pai há tres anos minha mãe sabia noticias por um tio teu . e eu quero muito falar contigo vais gostar de ouvir o resto da história…..de um herói que está em paz e que não quiz partilhar daquela guerra A minha Avó é de um lugar perto das Pedreiras SEiça Prometes Etelvina Costa

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