Enquanto a Europa definha, os dividendos aumentam

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© Jacques Demarthon

Uma parte importante dos recursos públicos destinados aos cuidados em saúde, à educação, à criação e fruição cultural, enfim, ao desenvolvimento numa perspectiva larga e de longo termo, foram já subtraídos aos orçamentos dos Estados como consequência de decisões políticas que privilegiam outras prioridades – mesmo se anunciadas em nome de pacotes reformistas ou do «rigor orçamental». É certo que as Constituições ainda asseguram, mesmo se nessa letra pequena de lei que a actual classe de governantes tem relutância em ler, os princípios democráticos que servem uma ideia de sociedade em que a desigualdade extrema não cabe – mas também que as leis fundamentais perderam relevância no quadro das actuais políticas dos Governos, ligados entre si pelos contextos obscuros de uma economia global cujos primeiros grandes embates justamente sofremos por estes dias.

A desigualdade atinge em 2014 níveis jamais sonhados pelas gerações nascidas na Europa e na América depois das guerras do século XX. Por todas estas razões, é sempre bom ir tendo notícias do paradeiro da riqueza que ainda ontem servia a vida de muitos mais, designadamente sob a forma de direitos adquiridos por contrato social, mais do que hoje empenhado na qualidade da vida e na mobilidade social dos cidadãos. Em França, um índice recentemente publicado por uma empresa de gestão de activos chamada Henderson Global Investors (HGI) acaba de revelar o aumento exponencial dos dividendos pagos pelas grandes empresas aos seus accionistas. Incidindo no segundo trimestre do ano, o referido índice dos melhores retornos mundiais em dividendos emergiu no espaço mediático francês no exacto momento em que as ajudas públicas às empresas privadas (em nome da retoma económica e da criação de emprego) atingiram um patamar de investimento jamais conhecido.

Eis alguns números: no segundo trimestre de 2014 os dividendos pagos no Mundo inteiro pelas empresas cotadas em bolsa (pelo seu exercício de 2013) progrediram em perto de 12% relativamente ao mesmo trimestre do ano passado, atingindo um total de cerca de 427 mil milhões de dólares (cerca de 320 mil milhões de euros). A Europa, juntamente com o Japão, vai à frente, apesar da recessão na zona euro, contabilizando 40% do valor total dos dividendos auferidos no período. Entre os grupos mais generosos encontram-se as empresas espanholas (+ de 75% de aumento, num país em plena recessão), e as francesas: mais de 30% de aumento, um montante inédito para França, que a coloca muito à frente da primeira grande economia europeia, a Alemanha, cujos dividendos análogos aumentaram em apenas cerca de 4%, e à frente também do Reino Unido, que registou apenas cerca de 10% mais dividendos que no segundo trimestre de 2013. Portugal também lá está (ver anexo 1).

Numa economia também ela recessiva, o espectacular aumento de dividendos pagos em França até ao final de Junho revela aquele que é um comportamento constitutivo do sistema que domina o Mundo: as grandes empresas preferem distribuir dividendos a reinvestir. Apesar da queda da procura (de que serve produzir, por exemplo mais carros, se são cada vez menos os que podem comprá-los?), a ausência de investimento em favor da generosa recompensação aos accionistas sob a forma de dividendos explica-se sobretudo pelas exigências de rentabilidade que os podem assegurar – independentemente da saúde das economias, e com a colaboração da classe política que as abstenções nacionais puseram no poder.

Mas como conceber que a Europa, cuja taxa de crescimento é a mais baixa do Planeta, e cuja taxa de desemprego atingiu recordes desde 2008, seja a região do Mundo que mais subiu em valor de dividendos distribuídos aos accionistas, totalizando 40% dos dividendos mundiais (+ 58% relativamente ao mesmo trimestre de 2009)? «Os bancos endividam-se junto do BCE a 0,25% e, graças às suas aplicações, obtêm rentabilidades fabulosas. Como é que querem que, nestas condições, os bancos se preocupem com o crédito às pequenas e médias empresas? É preciso injectar maciçamente dinheiro na transição energética. Mas a cegueira dos accionistas e a política de vista-curta predominam», afirmou Benjamin Coriat, professor de Economia, questionado por jornalistas a propósito do índice da HGI.

«O preço do capital é demasiado elevado para permitir o investimento na economia real. As aplicações financeiras são muito mais rentáveis. Mas com estes níveis de dividendos é impossível pôr as PME a competir com os mercados financeiros. Mas há soluções: uma delas é acabar com o «pacto de responsabilidade» social das empresas e redireccionar os recursos públicos para a investigação, para a educação ou para a saúde. É também necessário taxar os dividendos através da introdução de uma diferenciação fiscal que claramente separe a parte dos lucros reinvestidos da parte dos lucros redistribuídos», disse ainda Coriat, que preside aos Economistes Atterrés, uma plataforma de intervenção cidadã participada por… economistas aterrados, mas mesmo assim mobilizados para a necessária e urgentíssima inflexão de caminho – desde logo passível de politicamente regulamentar o lugar da especulação financeira na economia de sociedades democráticas.

O referido estudo da Henderson Global Investors [Fonte: Le Nouvel Observateur Economie]

Comments

  1. Reblogged this on O Retiro do Sossego.

  2. joao lopes says:

    um filme mais que visto,por isso mesmo acho “o lobo de wall street” de m.scorsese uma obra politica e da critica social.Afinal a ganância do dinheiro serve para as pessoas darem aquele “espectaculo” tão bem descrito neste filme…enfim,é a herança de bush e seus apoiantes…

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  1. […] no peito, sobre os mais pobres dos pobres, sobre o desinvestimento público na Educação, sobre a desigualdade na Europa, sobre as divisões da esquerda, também. Escrevi uma peça de teatro chamada Partir. Escrevi muito […]

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