Contra o Orçamento do Estado para 2015

É um orçamento evidentemente de rigor
— Miguel Macedo

 

Evidentemente.

Acerca do Orçamento apresentado às Cortes, em 1836, Francisco António de Campos, ministro da Fazenda no Governo de José Jorge Loureiro, de 18 de Novembro de 1835 a 20 de Abril de 1836 – além de autor quer de A lingua portugueza é filha da latina, quer da primeira tradução portuguesa das Metamorfoses ou O Burro de Ouro de Apuleio (nas palavras de Costa Ramalho, “uma tradução digna, ainda hoje, de ser lida”)–, escrevia o seguinte:

fac

Hoje, como acabámos de saber, foi dado mais um passo acelerado para a nossa ruína e verifica-se que, desde a proposta de 2012 (“em Outubro de 2011, Passos Coelho apresentou o seu primeiro Orçamento anual, o que passaria a vigorar em 2012“), a acção do tempo não foi reparadora.

Espero que António Costa mantenha a sensata decisão de votar contra a proposta que o Governo entregou há pouco na Assembleia da República. Efectivamente, como previsto ontem por Heloísa Apolónia, o Orçamento do Estado para 2015 é um “Orçamento do Estado da continuidade”. É verdade que Apolónia termina a frase com “da austeridade”, mas poderia perfeitamente ter adoptado outra perspectiva e rematado com “[dos] ilegíveis garatujos confusos” – exactamente, os “ilegíveis garatujos confusos” do Governo, como os daquele “médico céptico” (sim, ‘céptico’) do Fado Alexandrino de António Lobo Antunes.

Temos, desde 2012, “ilegíveis garatujos confusos” nas propostas de Orçamento do Estado que o titular da pasta das Finanças (Gaspar, em 2012 e 2013; Albuquerque, em 2014) entrega à presidente da Assembleia da República. Continuo sem perceber o porquê de essa proposta continuar a ser recebida com um sorriso institucional, em vez de imediatamente rejeitada, porque ortograficamente inadequada e particularmente confusa. Contudo, esse é um problema meu e, como dizia Helmut Schmidt, “aber auch wenn meine persönlichen Empfindungen nicht so wichtig sind”.

Debrucemo-nos, então – depois dos desastres de 20122013 e 2014 –, sobre alguns dos aspectos mais relevantes do cataclismo (infelizmente, as inundações estão na moda) de 2015:

Aquisição líquida de activos financeiros (excepto privatizações) → p. 108;

total da despesa no âmbito de projectos → p. 116;

Os restantes valores respeitam apenas a projetos ativos → p. 116;

Na verdade, a população em idade ativa permanece como o grupo etário com maior peso na população total, no entanto, essa proporção vai diminuindo ao longo de todo o período de projecção → p. 202;

 

Despesa Efectiva excluindo transf. do OE p/ SFA’s → p. 117;

decréscimo de receita efetiva → p. 75;

 

a reafectação do financiamento para os setores → p. 229;

reafetação de recursos da estrutura produtiva dos sectores → p. 23;

 

medidas de caráter sectorial → p. 169;

produtividade a nível setorial → p. 222;

vasto conjunto de medidas sectoriais → 126;

ajustamentos nas medidas setoriais → p. 38;

 

Investigação científica de carácter geral → p. 142;

medidas de caráter transitório → p. 36;

 

Habitação e serviços colectivos → p. 132;

Habitação e Serviços Coletivos → p. 163;

A redução do prazo de caducidade e de sobrevigência das convenções colectivas pretende promover o desenvolvimento e aprofundamento dos mecanismos de negociação coletiva → p. 223;

 

Sistema Eléctrico Nacional → p. 162;

destinado ao sistema elétrico nacional → p. 230;

centros electroprodutores → p. 242;

 

Impostos indirectos → p. 74;

impostos indiretos → p. 76;

 

Impostos directos → p. 74;

Impostos diretos → p. 76;

 

é projectada uma diminuição da população → p. 201;

Em resultado das tendências projetadas → p. 203;

projectando-se que esse valor → p. 201;

projetando-se uma diminuição → p. 202;

 

Objectivo (componente da despesa /receita) → p. 214;

Permanece o objetivo de concluir → p. 169;

 

identificar aspectos a melhorar → p. 228;

nos aspetos fundamentais → p. 18;

 

Projecto do Orçamento do Estado → p. 245;

projeto do Hospital Lisboa Oriental → p. 64;

 

Direcção-Geral do Tesouro e Finanças → p. 66;

Direção-Geral do Tesouro e Finanças → p. 249;

Direção-Geral das Actividades Económicas → p. 249;

 

Valor Acrescentado Bruto a Custo de Factores → p. 258;

diversos fatores → p. 89;

 

Segurança e acção social → p. 132;

Segurança e ação social → p. 149;

 

Protecção do meio ambiente e conservação da natureza → p. 132;

regime de proteção social → p. 99;

 

Execução ajustada de situaçoes [sic] excepcionais → p. 85;

um crescimento excecional → p. 121;

 

Passagem da Ótica de Contabilidade Pública à Ótica de Contabilidade Nacional → p. 102;

Óptica da Contabilidade Nacional → p. 189.

 

E os clássicos:

Sublinha-se o fato de o valor previsto → p. 105

e

O programa SIMPLIFICAR, adotado pelo Governo na sequência da Resolução da Assembleia da República n.º 31/2014, prevê o envolvimento das partes relevantes, através de contatos diretos com empresas e campanhas de angariação de fundos → p. 237.

 

Efectivamente, como escrevi há um ano, só uma generosa dose de repugnância impedirá qualquer cidadão português alfabetizado de conter uma sonora gargalhada, perante o aviso “texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico”, inscrito num documento oficial do Governo português”. Agora, no Relatório do OE2015.

Não há estrangulamentos. Felizmente, também não há constrangimentos. 

Continuação de uma óptima semana.

Comments

  1. Jaculina says:

    A única coisa menos má deste acordo horto-gráfico é que os erros de ortografia acabaram.

  2. Eu acho que é mais um orçamento futurista, um orçamento do logo se vê…..

  3. Joam Roiz says:

    Ah! Ah! O exemplo acabado do bloco central dos interesses: maioria e oposição no mesmo documento oficial.

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  1. […] um lustro, como se perceberá através de leitura atenta dos sucessores OE2013, OE2014 e OE2015. Quanto ao OE2016, aguardemos com […]

  2. […] com toda a razão. Contudo, os OE de Passos Coelho (2012, 2013, 2014, 2015) também estavam «completamente mortos na sua credibilidade técnica». A solução, já sabemos, […]

  3. […] qualidade técnica. Aliás, na senda daquilo que aconteceu com o OE2012, o OE2013, o OE2014, o OE2015 e o […]

  4. […] é um mau orçamento». Contudo, os orçamentos de Passos Coelho (OE2012, OE2013, OE2014, OE2015) não foram melhores do que o OE2016 e o “mau orçamento em apreço”: o […]

  5. […] Exactamente: “com certeza”. Foi a resposta do primeiro-ministro, quando interrogado sobre a confiança em relação à aprovação do OE2018. Infelizmente, não perguntaram a António Costa acerca da qualidade técnica do OE2018. A certeza acerca da aprovação de um diploma depende de uma avaliação do desenrolar de negociações e da celebração de acordos entre partes: neste caso, entre PS, PCP, PEV e BE. E o primeiro-ministro, obviamente, “com certeza”. Agora. Porque, há uns anos, perante um documento exactamente com as mesmas falhas técnicas, António Costa votou contra a proposta do Governo. […]

  6. […] OE2018, sim. Todavia, já que estamos a falar sobre este assunto, também no OE2017, no OE2016, no OE2015, no OE2014, no OE2013 e, claro, nesse momento fundador, no […]

  7. […] mau hábito instalado nesta casa desde a época 2011/12 (cf. OE2012) e continuado em 2013, 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018. Porquê desde 2012? Exactamente pelo mesmo motivo de o Diário da República […]

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