O que me salva

A bem da Humanidade, só saio de casa depois de tomar café. Hoje a Humanidade correu um grande risco, e nem chegou a sabê-lo, porque eu decidi ir tomar o pequeno-almoço… (rufo de tambores, por favor) ao sítio a que chamam “o pão-quente”. Ora, esta operação tem a sua complexidade porque implica descer as escadas de casa, andar uns duzentos metros, cruzar-me com vários indivíduos, esperar pelas luzes verdes de semáforos, entrar, por fim, no sítio a que chamam “o pão-quente”, sentar-me tão longe quanto possível da Humanidade presente e pedir o desmedido luxo calórico do menu “croissant e meia-de-leite”.

Àquela hora, a Humanidade resumia-se a sete velhotes que alternavam a atenção entre o mergulho cauteloso da torrada no galão e o programa da manhã da RTP1. Entre observar as manchas de gordura que ficam a boiar à superfície do galão e o programa da manhã, eu sei o que preferia e não era a RTP-1, mas não tinha escolha, porque ninguém desliga a televisão nestes sítios e porque eu abomino essa prática do mergulho.

No programa da manhã, decorria uma animada sessão de “jogo do galo” e as pessoas do público agitavam os cotovelos como se fossem galináceos, não sei se para dar sorte ao concorrente se para animar “os telespectadores lá em casa”. Fosse o que fosse, àquela hora, e sem a terapêutica dose de cafeína que nos torna indulgentes, ver aquele grupo de dementes a agitar as asas enquanto um demente “lá em casa” jogava o jogo de galo com outra demente “apresentadora” e saber que esta bosta é o serviço público de televisão que poderia e deveria ser outra coisa, aproximou-me perigosamente do limiar de segurança.

Por sorte, apareceu o empregado com uma meia-de-leite adequadamente muito escura e um croissant insultuosamente cru, vítima daquela mania portuguesa de “tirar antes do forno para poupar na luz”. Quando reclamei ao empregado, ele respondeu: “Não está cru, está húmidozinho”. Se eu tivesse uma kalashnikov, o sítio a que chamam “o pão-quente” seria agora conhecido como o sítio onde houve a chacina.

Um homem acabado de entrar tentava derrubar a porta do quarto de banho, apesar dos gritos que chegavam do outro lado da porta. Foi precisa a intervenção do empregado para que a criatura alcançasse o significado de “está ocupado”. Quando o ocupante saiu, vinha a apertar a braguilha com discretíssimas sacudidelas do fecho, e foi saudado pelo outro com afectuoso reconhecimento “Eras tu que estavas lá, meu paneleiro?”

E então, ainda antes de levar o primeiro sorvo de café à boca, eu tive de reconhecer, uma vez mais, que antes do primeiro café eu sou de tendência extremista fascistóide, e que só a cafeína garante a minha integração na sociedade, e que se não fosse ela eu já teria “dado cabo disto tudo”, porque “isto só deitando tudo abaixo”, e “e com este povo não vamos lá”.

E que é só à medida que o dia avança, e eu vou nutrindo o instável equilíbrio do meu corpo com cafeína, que irrompem as minhas preocupações sociais, a minha capacidade de empatia, a minha preocupação com os direitos humanos, o paz, o pão, a habitação. E, inevitavelmente, quanto mais cafeína eu bebo mais me aproximo da esquerda radical, quadrante onde muitas vezes acabo o dia, com uma pálpebra aos saltos, uma ou outra taquicardia, e discursos cruzados por relampejantes “as ruas são nossas! o povo é quem mais ordena! isto só lá vai à bomba!”. No dia seguinte, volta tudo ao começo.

Lá bebi a meia-de-leite, ainda pedi mais um café curto, e quando saí para a rua já estava a entrar naquele estado de benignidade que permite saudar os conhecidos, entrar no quiosque da esquina, ir a correr atrás da mãe que não viu o puto lançar um sapato borda fora do carrinho.

Nos dias em que atino com a dose, e o equilíbrio de cafeína alcança o seu ponto ideal, chego mesmo, vejam bem, chego mesmo a ser simpática.

Foto: Paolo Pellegrin

Comments

  1. José Meireles Graça says:

    Tem que pensar num programa, cuidadosamente faseado, para se desligar dessa dependência do café e da esquerda, Carla Romualdo.

    • E qual seria o benefício?

      • José Meireles Graça says:

        Mens sana in corpore sano. Mas não quero parecer radical: até três cafés por dia e inclinações social-democratas não serão o ideal mas estão dentro dos limites do razoável. Agora, escrever tão bem e estar na esquerda muito carregada é um escândalo.

        • Não estamos de acordo, José. O que menos me interessa quando encontro alguém que escreve bem é para que lado cai.

          • José Meireles Graça says:

            Concordamos em discordar, Carla, é melhor do que nada.

          • Curioso conselho. Por acaso já pensei o mesmo, mas ao contrário: o José Meireles Graça, social-democrata que fosse, escusava de desperdiçar talento em causas indefensáveis (embora verdade se diga sejam essas as mais necessitadas).

      • José Peralta says:

        Carla Romualdo

        Apercebo-me que, até pelo habitual conteúdo das suas belíssimas crónicas, que é uma pessoa culta, informada, com “mens sana in corpore sano”, apesar da “dependência do café e da esquerda” !!!!!!??????.

        Não tenho o atrevimento, direi melhor, o descaramento de a “aconselhar a mudar de lado”, mas sou “suspeito”, muito por a mim me parecer que estou… do seu “lado” !

        E faço minha a sua pertinente pergunta : Qual o “benefício” de tal mudança “dentro dos limites do razoável” ?

        Será o de aprovar, qual zombie, o circo de horrores com que a direita(lha) nos tem “beneficiado” ?

        Serão os criminosos exemplos de destruição de um País, das suas estruturas e valores democráticos, e depois, os cínicos, patéticos e cobardes “pedidos de desculpa” pelo “erro” e pelo “transtorno” que constituem tão “grato benefício”, quando o “benefício” os devia era sentar num comprido banco dos réus?

        Serão os magníficos exemplos de “stand-up comedy” de sarjeta, de quem faz o mal, a caramunha e, insultuosamente, ainda se ri como hienas, com a hecatombe que tem provocado ?

        Carla Romualdo, cumprimento-a com consideração (mau grado esse “pecadilho”, veja lá (!!!!!!) de ser de Esquerda !.

  2. Zeca Diabo says:

    Boa crónica.

  3. José almeida says:

    Excelente “postal” de Portugal e dos portugueses. Por vezes não precisamos de ler um livro para entrar no íntimo do nosso povo. Excelente artigo. Parabéns.

  4. Rui Moringa says:

    Carla,

    Agradeço o prazer que me deu ao ler o seu texto-crónica.
    Tem imagem das palavras e escrito em bom português, o que não abunda por aí.
    Ainda bem que não usa G3 hahaha. Ficava melhor na crónica a G3 em vez da kala… Às vezes dá ganas assistir a bestialidades. O mundo está cheio disso.
    Compreendo o comentários com sugestões para mudar de campo. É humano, mas…Em liberdade, devemos dizer:
    -Carla seja o que quiser, mas escreva crónicas sobre NÓS, por favor.

    • A G3 não, Rui, porque me traz más recordações (não pessoais, que nunca empunhei nenhuma), e nestas coisas, como noutras, a memória pode muito.

  5. José almeida says:

    Pelos comentários, entende-se que os respectivos autores concordam que estavam perante uma crônica, em tudo semelhante a uma linda imagem ou uma bela pintura.

    Ler esta crônica é como ouvir o ‘até ao Verão” da Ana Moura.

    A Ana Moura é de esquerda? Não sei, não imagino, nem quero saber….

    • ó José, o “Até ao Verão”? Essa deixa-me de boca aberta, mas grata, ou não a tivesse ouvido muitas vezes.

    • Teresa Bizarro says:

      O que é uma ‘crônica’? Não consigo entender esta «pontuação» …

  6. fartodisto says:

    O meu pequeno almoço é muito semelhante ao descrito nesta crónica… E porquê??, Porque ainda não emigrei!….
    Muito bom, mesmo Carla, infelizmente conheço muita gente equiparada ao tipo que estava a ocupar a casa de banho, mas pior que isso, é a quantidade de pessoas que ainda estão à porta do WC, e como eu costumo dizer, só porque estão “à MIJINHA prá ARRASCAR” cagam para todo o seu redor!……..

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