Asa de morcego, pata de aranha

Conheço uma astróloga / taróloga / quiromante/ numeróloga/ aromoterapeuta/  maga holística/ reflexóloga/ conselheira espiritual, a quem eu, para simplificar, chamo a bruxa. Ao que parece, o negócio nunca lhe correu tão bem, coisa que não pode causar espanto em épocas de crise, porque é justamente da crise que vivem os videntes do futuro. As pessoas felizes não consultam os bruxos, nem lhes ocorreria desperdiçar meia hora de felicidade para saber como será um futuro que pode bem ser pior do que o presente. São sempre os infelizes, os derrotados, aqueles que não temem a previsão porque acham que as coisas não podem piorar (e nisso enganam-se, porque enquanto estivermos vivos tudo pode sempre piorar) os que querem saber como será o futuro, e que procuram o conforto de uma previsão vaga, nebulosa e alentadora.

“Vejo um homem estrangeiro”. “Pressinto a chegada de uma boa notícia”. “Vai conhecer uma mulher de cabelo negro, não fuja dela”. “A sua sorte vai mudar numa terça-feira.”

E com isso já uma pessoa triste e desesperançada tem motivos para aguentar-se um pouco mais, à espera das terças mágicas, dos homens que vêm de longe ou das mulheres de cabelo preto. É pouco, mas é qualquer coisa, e se o corpo precisa de pão e água, o espírito precisa de esperança.

A bruxa tem, ao menos isso, a grande qualidade de acreditar naquilo que faz. Basta que nos cruzemos uma vez com o seu olhar altivo e penetrante para perceber que ela se sente imbuída de um espírito adivinhador que tem viajado pelo Tempo e pelo Espaço, pelo menos desde a Sibila de Cumas até chegar a ela. Para si não cobra as nove vidas de 110 anos cada, como a sua longínqua antecessora, mas o conforto terrenal do casaco de vison e do jardim com piscina.

Por vezes vejo os seus clientes, homens e mulheres que procuram passar despercebidos, mas que chegam inquietos, ansiosos, à espera de uma revelação, e que saem esperançados e com sacos cheios de velas, defumadores, pêndulos, cristais, vinagres, pirâmides, incensos, uma parafernália de objectos que lhes mudarão a sorte, que afastarão as nuvens negras que possam pairar sobre os seus futuros dias luminosos. A sorte precisa de empurrões, de mezinhas, de forças do bem ou do mal convocadas como aliados, do sangue de uma galinha negra, de cem velas a arder no crepúsculo.

Entre os meus conhecidos pouco supersticiosos, há muitos que se permitem comentários sardónicos acerca da bruxa e das suas actividades, e a olhar com comiseração os crédulos que lá vão. Já eu, não vejo nisto nada de mais impreciso ou fabuloso do que as previsões da evolução dos mercados, as suas hipersensíveis reacções a notícias más para o “clima económico”, o cuidado com que vigiam os batimentos cardíacos das bolsas de cada vez que alguém faz qualquer coisa de que elas possam não gostar. Se querem que vos diga, para mim a relação entre defumar uma casa e com isso pôr a sorte do seu lado é tão difícil de estabelecer como a de reduzir salários para que a economia cresça. E o deus Mercado afigura-se-me tão caprichoso e rabugento quanto Zeus, deus dos raios.

Mas enquanto a alta finança e os mercados são ciência, a bruxa é imaginação e teatralidade. Bem vistas as coisas, charlatães há muitos e cada qual escolhe o seu, mas esta bruxa sempre faz menos estragos.

Imagem: “Sibilia Cumaea” de Elihu Vedder

 

Comments

  1. Eu prevejo que amanhã o Sol nascerá. Mas apenas durante o dia, porque os astros dizem-me que à noite não haverá Sol. Também prevejo que fará frio durante o Inverno e que no Verão haverá calor.
    Prevejo igualmente que os portugueses continuarão alegremente a votar em políticos corruptos e incompetentes e que, passados cerca de 2 anos estarão arrependidíssimos e a desejar que o D. Sebastião seja outro porque, afinal, não era este.
    Prevejo que os pobres serão pobres e que os ricos continuarão a ser ricos à custa dos pobres e que o Jorge Jesus nunca será professor de Português.
    Ah e que a Terra continuará a girar por mais 60 mil milhões de anos. Se não for assim, processem-me. Nessa altura, claro.

  2. Rui Moringa says:

    Bem,
    O tal negócio dos mercados e as previsões económicas são também actos de adivinhação.
    Estou de acordo consigo, a bruxa que conhece faz menos estragos.

  3. José almeida says:

    Passaram já mais de três décadas do assalto à casa do Porfirio (nome inventado). O Sr Porfirio, um abastado com aspecto miserável, contam as “más línguas”, que o homem tinha muito ouro guardado na sua casa de pedra, velha, mas aparentemente segura. Avarento, nunca mudou o soalho nem o tecto de madeira. Numa madrugada de inverno, aos gritos, manda que chamem a Polícia, porque assaltantes entraram pelo telhado, fizeram um buraco no tecto com um serrote e levaram tudo. O ouro todo. Uma vez no local, os policias vêm de facto o buraco bem desenhado no tecto, e, experimentados nessas andanças, repararam pelas farpas que o buraco no tecto tinha sido feito de baixo para cima e não de cima para baixo. Confrontado com a descoberta da polícia, astuto, começa novamente aos gritos a dizer que foi bruxaria, que foi o Demónio que lhe entrou em casa e lhe levou tudo. Desde então, passou a ser conhecido por “bruxo”.

    A evidencia dos últimos acontecimentos em Portugal, não tem dado muita margem de manobra aos advogados. Não me admirarei muito se Sócrates e muitos outros prescindam dos devotos defensores e comecem a contratar bruxos e videntes. O povo acreditará que o que ele fez, de facto não fez. Foi vítima de bruxaria, do mau olhado e da inveja dos outros.

    Para que isto não fique mesmo ainda pior, espero que os ‘búzios fiquem virados para norte, que nos mexam no destino e nos alterem a sorte’.

  4. Bela posta!
    É o medo de existir. Não, não li o livro!

  5. Para quem acredita na frase da autora ” acreditar naquilo que faz” aconselho um livro pequeno de teatro chamado Madame Solange Vidente e se bem me recordo não dá o tempo por mal empregue.

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