Nas urgências – uma história sem ficção

Era um dia frio, caía uma chuva miudinha, era véspera de Carnaval e estávamos nas urgências de um hospital público português.

Ao início da tarde, a sala estava cheia, uma mulher dormia, ocupando três cadeiras. A seu lado, deixara um saco de viagem e um par de sapatos de salto alto. O lugar-comum que nos diz que o tempo pára na sala de espera do hospital era confirmado pelo relógio na parede, detido nas 8h21 de um dia já talvez longínquo.

Uma vez passada a triagem, e tendo recebido a pulseira colorida que lhe dita quanto tempo pode dar-se ao luxo de esperar sem que isso lhe perigue a vida, o doente desaparece para dentro da sala de urgências e passamos a só saber dele através do serviço de informações. Ao longo das horas, as informações, sempre telegráficas, confirmam que o tempo é outro. “Ainda não foi visto pelo médico”. “Vai fazer análises”. “Está à espera dos resultados das análises”. “Vai fazer uma ecografia”. “Está à espera que o médico veja a ecografia”. “Está à espera de reavaliação.” Cada um destes breves boletins informativos pode ser intercalado por períodos de uma, duas, três horas.

Na véspera de Carnaval, uma anomalia ditou um boletim informativo intercalar: “Estamos sem sistema”. E sem sistema, significa que tudo pára. Os serviços de informação não sabem informar, os médicos não conseguem ver os resultados de análises e exames. O tempo fica suspenso.

Alguns familiares vão conseguindo passar a barreira dos seguranças e ir falar com os doentes lá dentro, na sala de atendimento. De lá vêm os gritos de uma mulher:

– Ó filhas da puta, dai-me água!!!

À medida que a tarde declina, todos vão enlouquecendo um pouco, como se um delírio colectivo se apoderasse de quem cá está. Uma menina de 9 ou 10 anos, passeia-se pela sala com o seu absurdo disfarce de enfermeira, uma visão cómica e grotesca naquele contexto.  Um homem explica ao irmão, ao telefone, o que está a acontecer com a sua mãe:

– Disseram que chamaram por ela e ela não disse nada, pensaram que tinha ido embora, mas ela estava a dormir na maca! Agora tem de esperar outra vez! A sério, eu tou a bater mal, apetece-me rebentar esta merda a pontapé!

Hei-de reparar, ao longo desse dia e noite, que muita gente se indigna ao telefone, relata aos familiares a sua fúria, mas não se manifesta dentro do hospital. Saem, fumam cigarros à porta, e descarregam a impotência e a raiva para interlocutores longínquos. Enquanto ali estão vêem  chegar mais ambulâncias, novas macas a sair, velhos cobertos com mantas, mulheres de chinelos e roupões muito felpudos, de cores garridas, temerosas e envergonhadas, ou de olhar fixo e cego, anestesiado. Muita gente pobre, com as suas roupas gastas de feira, muitos rostos castigados, jovens já desdentados, rostos marcados pela fome. Não conhecemos a cidade onde vivemos enquanto não passarmos umas horas nas urgências do seu hospital.

Regressa-se lá dentro ainda mais angustiado porque sabemos que somos cada vez mais, que o fluxo de gente doente e assustada não se detém, que o sistema bloqueia, empanca, morre e que dependemos todos de gente assoberbada e de uma organização ferida de morte.

Um painel electrónico repete a mensagem de alerta contra o AVC. Falham-lhe letras, sinais, e dou por mim hipnotizada pela mesma absurda frase: SNAIS DE ALERTA: FALTA DE FORCA NUM BRACO.

A noite caiu, faz muito frio lá fora e um sem-abrigo chega à procura de cadeiras para dormir. Alguns doentes vão tendo alta. Uma mulher atravessa a sala quase a cair, não consegue endireitar-se, evita a queda por pouco e deixa-se tombar numa cadeira mesmo a tempo. O marido vai arranjar táxi para se irem embora. Alguém comenta ao meu lado “Dão alta às pessoas neste estado?” Encolhemos os ombros.

O relógio marca – sempre – as 8h21, mas sabemos que é mais tarde, muito mais. Rondo a porta, entro e saio, perco lugar porque as cadeiras estão ocupadas e fico junto à triagem. Uma rapariga chora encostada à parede. Não quer que ninguém se aproxime, não quer consolo nem água, só que a deixem chorar.

Uma mulher chega com uma anciã, pretende que ela seja vista por um médico. Indica os dados que lhe pedem e a anciã não parece estar a prestar atenção a nada. De repente, começa a gritar:

– Estão a enganaaaaar-me!!!

Levanta a voz a meio das palavras, como uma sirene.

– Trocam-me os medicamentos!!! Andam a envenenar-me! E o meu filho não desconfia, anda cego, mas eu não! Assassinos!

A rapariga encostada à parede irrompe num choro convulsivo, não porque a história tenha a ver com ela, mas porque já não consegue suportar aquilo.

A mulher que acompanha a anciã não se exalta, não lhe faz caso, põe-lhe a mão no ombro para conduzi-la à sala de espera. Está habituada. A outra cala-se e vai, obedientemente. Ao meu lado, alguém sussurra: Alzheimer.

O sistema já voltou, mas o monitor que indica quantos doentes estão por atender continua a dizer “sistema bloqueado”. Não sabemos quanta gente está lá dentro, não sabemos quantos estão atendidos e por atender.

As chamadas de protesto multiplicam-se lá fora. “Estou aqui há doze horas”. “Ainda ninguém viu o pai, parece impossível”. “Estou cheio disto, apetece-me chamar a SIC! Ou o exército!”

Um cego entra, o toque-toque da sua bengala cala a sala por instantes, dirige-se sem hesitar à máquina do café, tacteia a ranhura das moedas, carrega no botão que deseja, retira o copo sem entornar, bebe o café num instante e vai-se embora. Ocorre-me que faz isto todos os dias, mas não sei se é verdade.

Os bombeiros vão levando gente embora, acabados de ter alta. Um homem que parece ter mais de oitenta anos vai sentado na cadeira de rodas, vestido apenas com um fino pijama, com um saco plástico do hospital sobre as pernas, provavelmente os seus pertences, e uma manta coçada sobre os ombros. De cada vez que as portas da ambulância se fecham é impossível deixar de pensar: terá alguém à sua espera?

Fico a saber como funciona o complexo sistema de requisição de uma ambulância para transporte dos doentes de volta a casa. O doente diz ao médico que não tem como voltar a casa, o médico dá ordem para requisitar a ambulância, um enfermeiro preenche a requisição, um auxiliar leva a requisição aos serviços administrativos que contactam as ambulâncias.  Mas o enfermeiro está ocupado, muito ocupado no seu serviço, e precisa de tempo para preencher o documento. E o auxiliar tem que levar doentes a fazer exames, ajudá-los a ir à casa de banho, chegar-lhes um copo de água, recuperar cadeiras de rodas perdidas pelos serviços, nem sempre está livre para ir buscar a requisição. Até que o papel, o papel que já foi preenchido, chegue à secretária de quem vai dar-lhe seguimento, podem passar muitos minutos. E o doente espera, desespera por voltar para casa.

No balcão do lado, um homem conta uma complicadíssima história para justificar o estado do homem que o acompanha.

– Ele bebeu sumo de limão com muito gelo, mesmo muito gelo. E parece que também uma garrafa de verde branco, não tenho a certeza. Eu acho que lhe deu uma congestão, sabe?

Quem o atende só quer saber nome e morada, mas o homem está atarantado. É que se chega às urgências dos hospitais sempre aturdido. Mesmo que sejamos apenas alguém que vai saber notícias de um doente, o simples facto de atravessarmos a praça cheia de ambulâncias, de evitarmos as macas que saem e entram, com doentes, feridos, acidentados, de passarmos as portas automáticas, essa espécie de limiar que separa o mundo normal do limbo que é um hospital, tudo isso é suficiente para nos aturdir ainda que estejamos saudáveis e sem queixas.

O segurança avisa que uma das salas de espera vai encerrar, é meia-noite. Mas não há cadeiras que cheguem para todos, dois sem-abrigo ocupam várias cadeiras, estendidos a dormir, e acabamos a deambular por ali, como zombies. Parte da sala está às escuras, não se acenderam os candeeiros. Continuam a ser, serão sempre as 8h21. Já ninguém fala, todos se resignam à noite e à espera.

Quando por fim, o nosso doente tem alta, saímos dali como quem escapa ao cárcere. Livramo-nos de uma grande aflição, estamos aliviados, mas não conseguimos sacudir de cima a angústia das horas que passamos ali. Esta noite, a cena há-de repetir-se nas urgências. E eu já não preciso de vê-la para sabê-lo.

 

 

 

Comments

  1. Rui Moringa says:

    Carla Romualdo,

    Gostei muito da sua crónica.
    Ela é a expressão das nossas fraquezas e grandezas humanas.
    Trabalhei numa urgência durante alguns anos sistemáticamente.
    É assim mesmo como descreve.

  2. sinaizdefumo says:

    Ó menina, é pra chorar ou pra rir? eu sei que não devia mas não paro de rir. Será que o homem se sentiu mal derivado ò gelo? Magnífica tragicomédia infelizmente com base em cenas da vida real.

    • A vida é mesmo assim, não é? E o riso agradece-se sempre, por breve que seja.

    • Mas qual “tragicomédia”, qual quê, sr. “sinaizdefumo”?…Em fumo, fiquei eu ao ler o seu pretenso comentário humorístico!
      Olhe!…Lá lá que diga que estamos perante uma excelente crónica “com base em cenas da vida real”, é uma coisa; agora, “tragicomédia”???…Mas que termo mais descontextualizado, diria mesmo, de todo infeliz, dada a pertinente temática abordada.
      Pois fique sabendo que, infelizmente a REALIDADE que impera, e que ás vezes, ainda é bem mais grave – pois só nós é que sabemos o que se passa nos “bastidores”, porque enfim, estamos 24 H por dia, no terreno – é ESTA MESMO!!!
      Por conseguinte, se ousa comentar, ao menos dê-se ao trabalho de elaborar uma fundamentação inteligentemente estruturada, porque senão, corre o risco de lhe “mostrarem as garras”!
      E sim! Fui eu mesma quem colocou um “NÃO GOSTO” ao seu comentário!

      • sinaizdefumo says:

        Ai foi? marota, isso não se fazia, fiquei tão triste!…
        Mas, sabe? é a minha opinião, o texto tem elementos trágicos e cómicos, fazer o quê? “a vida é mesmo assim”.

        • Ponto 1- “Marota”?…Tenha a “santa paciência” sr. “sinaizdefumo”! Eu, ao menos, apresento-me com nome e mais(!), dou a cara!
          Ponto 2- SENTIMOS e VISIONAMOS o texto de maneira diferente.
          O senhor, que provavelmente será um leigo, que é como quem diz: não faz a mínima ideia do que é ser-se profissional de saúde em Urgência Hospitalar, considera a crónica como uma “magnífica tragicomédia”, alegando a existência de “elementos trágicos e cómicos”!(???)
          Eu, que estou embrenhada nos meandros da tragédia, no verdadeiro sentido da palavra, fiquei mais sensibilizada com os pormenores descritivos que visam esmiuçar o sofrimento e o desespero dos doentes e familiares, que a nós recorrem. E fiquei triste…sinceramente triste, sabe porquê?
          Porque esta canalhada corrupta que detém o PODER, a bem dizer, conseguiu destruir o SNS, quase “num abrir e fechar de olhos”!
          Muito bem!…O que é que se há-de fazer? Gostos, não se discutem, não é verdade?
          Agora, numa coisa estamos de acordo: é efectivamente uma magnífica crónica!
          Passe Bem! 🙂

          • sinaizdefumo says:

            Vossemecê passe bem também. Os gostos discutem-se só não se devem impor.

  3. Nightwish says:

    Tenebroso. É fechar os hospitais públicos para a cena não se repetir!!!

  4. Reblogged this on O Retiro do Sossego.

  5. Uma excelente crónica alusiva ao caos que impera nas Urgências Hospitalares, segundo o olhar atento de quem está do lado de lá, e entra neste “limbo”, que é, melhor dizendo, se tornou, a urgência dos nossos Hospitais Públicos.
    O resultado está à vista: DESUMANIZAÇÃO e DESRESPEITO pela DIGNIDADE DA VIDA HUMANA!
    O mundo havia de ler o seu testemunho Carla Romualdo, pelo que, muito embora seja francamente selectiva, faço questão de partilhar o seu artigo.
    Muitos parabéns! 🙂

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  1. […] relógio da enfermaria não passa das 8h40 (como aquele que a Carla descreveu, certa vez), mesmo que a realidade te mostre como andam a mil à hora os médicos e enfermeiros. Aquele foi um […]

  2. […] relógio da enfermaria não passa das 8h40 (como aquele que a Carla descreveu, certa vez), mesmo que a realidade te mostre como andam a mil à hora os médicos e enfermeiros. Aquele foi um […]

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