A liberdade dos mercados

Ricordi politici e civil

Levo vinte anos relendo assiduamente um pequeno conjunto de autores cujos escritos, quase todos sob a forma de máximas, apotegmas e conselhos, nos deixaram um retrato desencantado da natureza humana: Castiglione, Guicciardini, Maquiavel, Gracián, La Rochefoucauld, Chesterfield. Aprendo muito devagar, e por isso talvez demorarei a vida inteira para compreendê-los. A cada ano que passa, as releituras ganham outro sentido — e iluminam mais o presente. Foi o que senti neste serão, quando repassando Guicciardini me pareceu encontrar uma descrição lapidar do autoritarismo que se prepara sob o nome da “liberdade dos mercados”, apregoada pelos admiradores de economistas como Hayek, Mises e Friedman:

Não acreditem naqueles que pregam fervorosamente a liberdade, porque quase todos, senão todos, têm por objectivo satisfazer os seus interesses particulares; e a experiência mostra-nos claramente que se eles conseguissem obter os seus propósitos por meio de um Estado autoritário, correriam ao seu encontro”.

Ricordo 66
Non crediate a costoro che predicano sì efficacemente la libertà, perché quasi tutti, anzi non è forse nessuno che non abbia l’obietto agli interessi particulari: e la esperienza mostra spesso, e è certissimo, che se credessino trovare in uno stato stretto migliore condizione, vi correrebbono per le poste.»

(Francesco Guicciardini, “Ricordi politici e civili”, 1530)

Comments

  1. Ernesto Martins Vaz Ribeiro says:

    Ou seja, concluímos que estes neoliberais mercantilistas que apareceram à boleia das ditas “doutrinas americanas”, nada inventaram. O que fizeram em conjunto foi, numa óptica de “Melhoria Contínua”, refinar critérios para, mais “democratica e facilmente” se apropriarem do que é dos outros.
    Ou seja, transformaram-se em “especialistas de transferência” de mais valias…

  2. Mises, Hayek ou Friedman são importantes na vertente económica do pensamento libertário, mas se esquecerem Tocqueville, Adam Smith, Hume ou Hutcheson entre outros, não percebem nada. Porque a Liberdade não será apenas económica, mas social.
    Desde os primórdios da humanidade, o indivíduo organizou-se em sociedade para assegurar o seu bem estar, não para a servir. Ao longo dos tempos os Estados, todos eles sem excepção se fortaleceram submetendo o individual ao colectivo. É exactamente isso que me repugna. Quanto menor o poder do Estado, mais Liberdade teremos para fazer o que entendermos e sermos felizes, cada um à sua maneira. Não apenas na economia, mas também na economia…

    • Pedro says:

      Daí que na Somália, onde praticamente o Estado desapareceu, o individuo seja feliz e livre como uma borboleta. Com vida curta como a borboleta, também, infelizmente, mas não se pode ter tudo. Na época das migrações, o vento leva algumas dessas borboletas, certamente a contragosto, para países com estados com a mania do colectivo, na Europa, de preferência a do norte. Mistérios da natureza.

      • Não vou pelo caminho da ironia ou humor, porque a questão é séria. Convém lembrar uma característica que o ser humano possui, o instinto de sobrevivência. Foi essa característica que levou o ser humano a organizar-se nos primórdios. Uma situação extrema como a Somália, que nem é caso único, não aproveita a ninguém. Por princípio a palavra impostos carrega logo à partida uma carga negativa, desde logo porque não são voluntários. Mas são infelizmente necessários para garantir uma série de requisitos civilizacionais. Até aqui todos concordamos, a divergência está na extensão do que consideramos tarefa do Estado. Ao falar nos países nórdicos dá para perceber que divergimos, eu não considero de forma alguma legítima, bem pelo contrário, que o Estado possa arrecadar 30% ou mais dos proveitos do trabalho alheio. Para mim isso é confisco, parasitismo. Mas aceito que tem de existir um percentual de contribuição que garanta a inviolabilidade da vida alheia, respeito pela integridade física, direito à propriedade, integridade territorial ou acesso à justiça totalmente assegurados pelo Estado. Em matéria fiscal defendo uma flat tax, 10 a 15% no máximo, pode colocar um imposto negativo como forma de Justiça social. Chame-lhe utopia se quiser, até porque os EUA que muitos dizem ser exemplo está cheio de burocratas e elefantes brancos como por exemplo a Reserva Federal e outros sorvedouros do dinheiro alheio. (Sem falar que a crise de 2008 não começou com Wall Street, mas com políticas de fundos governamentais imobiliários que criaram uma bolha.) Isto para nem falar nos astronómicos gastos militares…

    • Nightwish says:

      Ora vá lá então lê-los e ver no que dá a “liberalização” de monopólios.
      Mas não precisa de ir tão longe, veja o que acontece aos “mercados livres” modernos, que de livres nada têm.

  3. António Crisóstomo Teixeira says:

    Sabedoria.
    A que a maior parte não tem acesso e que uma minoria de privilegiados procura iludir.
    Mais uns tantos para quem a recusa do conhecimento constitui uma forma de sobrevivência em ambiente adverso.
    Mas ainda sobram alguns que a procuram difundir durante uma parte das suas vidas. É assim que a chama se mantém viva.

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