O “Bardo” tunisino. Razões para o massacre.

O massacre do Museu do Bardo (21 mortos), em Tunes, tem razões claras, as quais tentarei sintetizar de seguida, sem no entanto cair no simplismo.

1º Há dúvidas sobre se o objectivo seria verdadeiramente o museu, ou o Parlamento, muito próximo (aliás a notícia começa a ser veiculada como sendo um ataque ao Parlamento), no qual decorria a votação de uma lei anti-terrorista. É esta a convicção do Ministro dos Negócios Estrangeiros Taieb Baccouche e de muitos outros tunisinos;

2º A Tunísia não se trata de um alvo de importância menor, muito pelo contrário. Trata-se do país onde as revoltas primaveris se iniciaram ainda em Dezembro de 2010 e o qual resolveu da melhor forma o processo de transição durante os últimos 4 anos, rematando o processo com a aprovação de uma Constituição que enfiou a famigerada Shariat num chinelo, quando o Artigo 2º define a Tunísia como um “Estado de carácter civil, baseado na cidadania, na vontade do Povo e no Primado da Lei”, apesar de o Artigo 1º mencionar o Islão como Religião de Estado. Tudo faz sentido, o Estado é laico, já que o Primado da Lei se sobrepõe à Religião e esta é ali mencionada, como o foi na Constituição de Habib Bourghiba, de 1959, assumindo agora a mesma dimensão histórica que o Preâmbulo da nossa Constituição. Mais à frente, o Artigo 6º consagra a “Liberdade de Crença e de Consciência”, impedindo os habituais redentores de perseguirem legalmente os apóstatas, sendo o Estado que protege o Sagrado e não os religiosos. O Artigo 21º garante os “Direitos e Liberdades Individuais e Colectivas”, sendo a lista longa, colocando o Ser Humano no Centro e não a Religião, para além de garantir a equiparação entre sexos. Ou seja, a Tunísia é, de facto, um Estado laico no coração do chamado Grande Magrebe, o arco que vai da Mauritânia até à Líbia;

3º Tal facto, impede da forma mais eficaz uma expansão territorial do estado dito islâmico no Magrebe, a qual se quer violenta, mas ao mesmo tempo natural, consensual e tranquila, da mesma forma que as dunas avançam e vão contornando os obstáculos que lhes aparecem pela frente, sufocando-os;

4º Tudo isto só foi possível com a colaboração e condescendência até, do Movimento islamista Ennahda, à época no Poder, o qual cedeu perante a pressão da opinião pública, após esta ter saído à rua em massa, em resposta aos assassinatos dos líderes da oposição Chokri Belaid e Mohammed Brahmi, ambos mortos no espaço de 6 meses pelo Ansar Ashariat, sabendo-se também que este grupo terrorista (responsável pela matança no Bardo) tinha elaborado uma lista com mais 20 personalidades a abater. Ou seja, o Ennahda e o seu líder, Rachid Ghanouchi, são agora considerados heréticos colaboracionistas, aos olhos da Internacional Terrorista, seja ela representada pela Al-Qaeda e/ou pelo estado dito islâmico. Como tal, alvos também a abater;

5º Este ataque fere de morte a recuperação económica do país, baseada no turismo. Nesse sentido, compreende-se que o Museu do Bardo fosse de facto o alvo principal, sendo que este espaço (os museus), se tenha tornado um símbolo para estes criminosos, após as imagens da destruição puramente nihilista e prazerosa vindas do Museu de Mossul. Na verdade, para os adeptos da virtude, o acto da destruição das estátuas é pura e simplesmente o cumprimento de um sunnah (tradição/feito/dito do Profeta), já que este também destruiu as cerca de 360 figuras tridimensionais com forma humanóide, que “decoravam” o espaço da Qaaba, aquando do seu regresso de Medina para Meca. Razão? Só se adora a Deus, não havendo espaço nem aceitação para idolatrias;

6º A Tunísia é o maior exportador de carne para canhão do Magrebe. Calcula-se que nos últimos 4 anos tenham seguido para a Síria e Iraque, até 4 mil tunisinos. Pela sua posição fronteiriça, tem, de certa forma, feito parte da nova rota (que evita a passagem pela Turquia) que canaliza criminosos para os teatros de operações. Primeiro para a Síria, depois para o Iraque e agora sobretudo para a Líbia. Há agora que contar com eventuais retornados, cujo modus operandi não andará muito longe do verificado no Bardo, no Charlie Hebdo, no Parlamento canadiano, no Museu Judaico de Amsterdão, etc. Aliás, significativo que os serviços de segurança estão a fazer o seu trabalho e a dificultar o acesso destes grupos/indivíduos a explosivos e detonadores.

Consequências

A Tunísia vai agora entrar no seu maior desafio de todos, o da negociação consigo e seus concidadãos entre Liberdades, Controlo/Vigilância, Democracia e Direitos Humanos, por via das novas medidas de segurança que terá que adoptar.

Verdade seja dita, que as mesmas não eram, até ontem, por aí além, sobretudo à entrada de hotéis, condomínios de luxo, museus, estações arqueológicas, onde se poderia entrar sem qualquer tipo de controlo prévio, bem como a videovigilância não ser vista com bons olhos, como aliás se compreende. Nesse e noutros sentidos, os tunisinos não são muito diferentes dos portugueses.

A alinhar pela lógica do que aconteceu ontem na Tunísia, não seria de estranhar um ataque destas dimensões, ou ainda maior (com mais de 2 atiradores e coordenado em várias cidades/locais), no Egipto, outro país que vive do turismo, tendo agora todas as condições de o potenciar ainda mais, após ter recebido cerca de 60 mil milhões de dólares, há cerca de uma semana. Estou a pensar sobretudo nas estâncias balneares de Sharm el-Sheikh, Hurghada e outras no Mar Vermelho e o Mosteiro de Santa Catarina e a Capela de Moisés (onde recebeu os Mandamentos, sendo que a “Sarsa Ardente” ainda lá está, à sombra e bem cuidada), no Monte Sinai, longe do bulício do Cairo e Alexandria.

Se o objectivo é o de enfraquecer os Estados, utilizando para tal todas as armas possíveis, a económica, é sem dúvida uma das mais eficazes.

Raúl M. Braga Pires escreve de acordo com a antiga ortografia

Publicado também no Blogue Maghreb/Machrek

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