Afonso

Já me tinha cruzado com ele numa destas noites, a cidade ainda celebrava e uma figura sonâmbula deambulava pelas ruas. Tapava-se com um cobertor como se fosse um manto, caminhava com passos incertos sob o seu cobertor verde na noite fria. Vi-lhe o rosto de relance e não percebi que fosse tão novo, 17 anos de fugas e solidão.  O Jornal de Notícias conta hoje a história do Afonso, o miúdo cigano a crescer sozinho nas ruas, entregue à bondade dos estranhos, à indiferença da maioria, ao descaso das autoridades, à crueldade de quem acha graça a vê-lo alcoolizado.

Na noite em que o vi, estava a cidade em festa, já disse, restaurantes e bares cheios, música na rua, e o Afonso, que depois percebi que estava a encaminhar-se para um dos locais onde se distribuem refeições grátis, era a nota dissonante. Como o eram todos os que se alinhavam no passeio, ao lado da carrinha, e que daí saíam com a sua sopa quente. Demasiadas histórias tristes para tão festiva noite.

Uma sombra, um fantasma, só não invisível graças ao seu manto, cobertor verde na noite fria,  como um miúdo mascarado de super-herói, perdido de casa mas há tanto tempo que já não há regresso para ele.

E caminho novo, haverá?

Foto: Pedro Granadeiro/ Global Imagens

Comments

  1. Rui Moringa says:

    A nossas estranhas formas de viver não se compadecem do Afonso e dos afonsos que por aí anda e dos quais nunca lhes veremos o rosto.
    Conheci alguns jovens assim sobre os quais tive algumas responsabilidades profissionais. Só encontrei “jabardices” institucionais sempre dissimuladas em argumentações funcionais, às vezes éticas e, sei lá, “filosóficas”.
    Depois vieram os tempos da sopa na rua. Dá-se sopa aos afonsos, na rua, para que não nos entrem pela casa dentro.
    Mas eles entram…
    O que noto de diferente na história do Afonso é ele ser de cultura cigana. Não é habitual.
    Uma sociedade sustentda pelo egoismo e materialista ignora os afonsos.
    Uma sociedade com preocupações na educação, formação olharia para o sucesso de outra forma, não aquele que é traduzido pelo dinheiro, que é apenas instrumental.
    Não lembra ao diabo “internar” um jovem de cultura cigana num lar!!!!
    Em Portugal reage-se, não se pensa…

    • “Dá-se sopa aos afonsos, na rua, para que não nos entrem pela casa dentro.” E quantas dessas refeições só são distribuídas porque há cidadãos que oferecem o seu tempo e recursos.

  2. Miguel says:

    Caminho?

    Tive todas as desculpas para estar como esse rapaz. Cheguei negro à escola mais que um vez e vi e ouvi coisas que nenhum miúdo deve. Dias sem almoçar, e fdps “sem pais” que me roubavam ou batiam.

    De mim ninguem teve pena, mas SOFRI. Crl se não sofri. E safei-me bem. Neste momento olho para essa imagem e apenas vejo um charro na mão de um alguem que simplesmente não quer saber.

    Pena? Há mts que sofrem em silencio e lutam. Esse que faça o caminho dele.

    • José almeida says:

      Caro Miguel,
      Sendo verdade o que diz, passou muitos sofrimentos na vida. Desafortunadamente, esses sofrimentos de nada lhe valeram na sua formação pessoal. Espero que o Afonso se ‘safe’ tal como você se safou, mas espero também que ele se ‘safe’ desse ódio que você não se conseguiu safar.

    • Ainda bem que, como diz, se safou, Miguel. Maior vitória será ainda a sua se conseguir que o seu sofrimento passado não faça de si um homem amargo e ressentido.

    • Miguel says:

      Não é fácil ter compaixão para quem nos magoa. A minha escola foi terrível, devido ao constante bullying que sofri por “esses” rapazes abandonados. Abusaram da minha fraqueza, da minha ingenuidade. Esse Afonso nunca me fez mal, mas os outros Afonsos sim. Como me podem pedir para agora lhes estender a mão?

      E mais vos digo, alguns rapazes cresciam nas mesmas condições e até eram irmãos desses “abandonados”. Mas tinham o coração no sitio. E isso me convence que há quem seja realmente bom e quem seja realmente mau.

  3. Rui Moringa says:

    A Carla Romualdo, quando escreve não nos deixa indiferentes.
    O texto tem metáforas e uma pergunta.
    No meu comentário também usei metáforas, mas deixei de lado a resposta à pergunta porque essa sim, é importante e interpela. Claro que há caminho novo, assim desejo e espero.
    Compreendo o comentário do Miguel. Muitos perante as dificuldades ( e que dificuldades) caem. Outros caem e levantam-se e, levantam-se.
    A privação de carinho, de bens materiais, não faz de todos nós uns mal-amados ou uns “ladrões”. Há tantas vidas calcorreadas em cima de dificuldades diárias…
    Miguel, tem a meu reconhecimento. Contudo, o José Almeida alertou, bem, para um aspecto importante: Não se detenha numa espécie de rancor dirigido aqueles que não têm ou tiveram a sua força.
    Estou um pouco cansado de algumas discussões, eventualmente, legítimas, sobre a culpa:
    – É do sistema social que nos traz privações ou
    – É do nosso psiquismo ou ambiente familiar?
    Há as mais diversas teorias para cada uma destas “culpas”.
    Reconheço muito mérito a quem ajuda com comida e roupa as pessoas como o Afonso, mas não chega. É depois da comida e da roupa que entra o caminho que a Carla fala, penso eu!
    Ou seja, o Afonso conseguirá ter uma oportunidade para o seu caminho? Será capaz de ter força para o procurar? Terá alguém que ajude a procurar?
    Só tenho, também, interrogações, desejo e esperança.
    Ainda hoje “luto” por ultrapassar injustiças e às vezes corre bem outras corre mal. Ultimamente mais mal do que bem.
    No passado sacrifiquei a chamada carreira profissional com “preocupações com o cão”- a deixa do filme. Não me lamento. Ando de cabeça levantada, tenho bom sono e sou mais livre.
    Muitos de NÓS são também assim.
    Este blog, pelo que se publica, é também um espaço de luta e liberdade com preocupações com o “cão”.

  4. Obrigada, Rui, acho que este seu comentário enriqueceu, e muito, o que deixei escrito acima.

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