A lama há-de engolir-nos

Não deve ter chegado a cinco minutos a “reportagem” (algum nome haverá que dar-lhe) a que assisti na Correio da Manhã TV. Quando passo por lá é em zapping acelerado, não vá salpicar-me naquele lamaçal interminável, mas desta vez, e suponho que seria porque era tarde e eu estava exausta e sem sono, deixei-me ficar a olhar. A notícia contava que uma mulher fora assassinada, outra ficara em estado crítico, ambas muito jovens. O homicida confesso, já detido, era o ex-namorado de uma delas. Depois de várias imagens dos familiares das vítimas lavados em lágrimas à porta do hospital, o “repórter” (algum nome haverá que dar-lhe) levou-nos a conhecer a mãe do homicida.

Uma mulher assustada, envelhecida, que respondia às perguntas como se estivesse a ser interrogada pela polícia, sem saber que não tinha porque fazê-lo. Abriu as portas de casa para que a filmassem. Pobre casa, de paredes de pedra, escasso mobiliário. Sobre um móvel, algumas garrafas de vinho, nas quais a câmara se detém com minúcia e malevolência. Este repórter quer deixar clara a sua mensagem. Não lhe chega acossar uma mulher assustada, é necessário que devassemos a sua intimidade e que o país lhe veja os pobres trastes e as garrafas de vinho. Vejam, ela bebe. Ou ela, ou o homicida, ou ambos.

A mulher baixa os olhos durante a entrevista muitas vezes. Se ela imaginava que o filho era um assassino? Não. Se ela sabia que ele ia matar? Não. Se já falou com ele? Não adianta ligar, diz, ele está preso, não vai poder falar. Ele tinha a arma aqui? Não, nunca no mundo! E agora há pânico nos olhos dela.

Apaguei a televisão, enojada. Mais do que isso, contaminada. Também eu entrei naquela casa e focei os quartos, a cozinha, as garrafas, também eu deixei aquela mulher em pânico, com as perguntas que fizeram para que eu ouvisse a resposta.

Recordei o que senti há anos, quando assistia, na televisão pública, a uma reportagem sobre o massacre ocorrido no bar “Mea Culpa”, e vi um jornalista cujo nome e rosto não esqueci, entrevistar uma criança, a filha de uma mulher que se prostituía e estava nessa noite a trabalhar no bar de alterne. A mulher estava morta. A criança, uma menina de dez ou doze anos, aparecia de rosto descoberto, e o repórter queria saber se ela estava triste. Ninguém o travou. Nem um colega, nem um editor, nem a direcção de informação, nem a sua própria consciência.

A lama há-de engolir-nos a todos.

Comments

  1. José says:

    Óptimo texto. E que caraças, quase tenho pena de não ter visto isso. Poraie às vezes faz-nos bem sentir nojo.

  2. Dezperado says:

    Ja nao bastava termos o jornal do correio da manha, agora tambem ha a TV do correio da manha. Jornalisticas que se preocupam muito pouco com as pessoas, querem é noticias bombasticas. Acho que nem jornalistas os devemos chamar, parecem mais vampiros à procura de sangue.

    Mas por outro lado, o CM é o jornal mais vendido em Portugal, o que nos levaria para outro debate.

  3. joao lopes says:

    as premissas de “vigilante dos bons costumes” a que o CM anseia ,ou da teoria de que o que a justiça não resolve,qualquer “programa da manhã” pode de certeza “resolver”,faz-me sempre lembrar a caça às bruxas nos anos 50 nos EUA.o problema coloca-se quando um génio do sec.xx foi expulso dos EUA com a estapafurdia acusação de ter simpatias pelos “vermelhos”.esse génio chamava-se Charlie Chaplin.quem o expulsou não reza a historia mas eram sem duvida os CM dos anos 50.aqueles que devassam a vida das pessoas,os tais “vigilantes”

  4. Artur says:

    Mas a mulher podia ou não ter simplesmente fechado a boca e fechado a porta do barraco? Decidiu não o fazer. Ninguém a obrigou. Não é menor. Não é deficiente mental. Qual é o drama? Porque estão a disconsiderar a decisão dela? Não é isto a liberdade? Por ser pobre, velha e inculta não é capaz de decidir por ela própria? Porque julgam tudo à luz dos vossos valores?

    • Anasir says:

      É uma mulher assustada. Tenha vergonha do que escreve…

    • Fernanda says:

      Exactamente porque é pobre, velha e inculta. E assustada… e desesperada… e incapaz de se defender dessa corja de jornaleiros que gostam de ser chamados jornalistas mas que não passam de abutres a cheirar a podre.
      Liberdade só existe com respeito e responsabilidade. Nesta “coisa” que passou naquele canal sanguinário não houve nem uma coisa, nem outra.

      • Artur says:

        Concordo que é mau jornalismo; mas recuso-me a fazer suposições sobre a fragilidade, sensibilidade, capacidade de defesa, capacidade de raciocinio, etc de outrém que não a minha pessoa. Todos somos diferentes, todos reagimos de forma diferente, todos temos a nossa agenda própria. Supor emoções nos outros à luz da nossa própria maneira de ser, é na maioria das vezes um temendo erro cognitivo; não se armem em cavaleiros brancos dos indefesos, nem andem sempre com eles ao colo, pois só favorecem a sua auto-vitimização.

        Por detrás deste suposto altruismo e preocupação pelos fracos e explorados, não está nada mais do que uma auto-gratificação do vosso proprio pedestalizado Ego.

    • carlos pereira says:

      Grande besta. Limita-te ao teu mundo meu fofo. A vida de pobre é muito mais séria do que a tua cabeça de mentecapto será capaz de entender. Faz-nos um favor a todos: Nunca mais dês opiniões. A humanidade agradece.

    • Cristina says:

      Subscrevo: Exactamente porque é pobre, velha e inculta. E assustada… e desesperada… e incapaz de se defender dessa corja de jornaleiros que gostam de ser chamados jornalistas mas que não passam de abutres a cheirar a podre.

  5. L. Faria says:

    Não vejo a CMTV pois não pago para ver merda dessa por isso não me sinto incomodado pelo que lá se faz. E faz-se porque existe gentinha que paga para que o grupo CM exista e produza esse tipo de conteúdos. Lavo daí as minhas mãos como o “Pilates” aquele das bolas grandes 🙂

  6. Vamos por partes. Não vejo e nunca vi a CMTV. Não compro e não leio o CM. Também não assisto aos programas da manhã ou tarde nas TV generalistas. Mas não me passa pela cabeça proibir o que quer que seja. Existe audiência para este tipo de lixo, o que talvez mereça uma reflexão sobre a sociedade.
    Recordo um sketch do Herman José, “cenas de um funeral”, dos 90’s, que bem serviria para parodiar este tipo de programas… (na altura já foi paródia ao lixo que emergia na guerra das audiências, actualmente está muito pior…)

    • joao lopes says:

      o grande Herman fez melhor, muito melhor.antecipou em 30 anos o “lixo” televisivo.concebeu o “tal canal”, que teve na altura uma grande “audiencia”.para onde foi essa dita “audiencia” esclarecida e culta? foi esmagada pela ganancia do “lucro maximo,conteudos Zero”p.s-nada tenho contra o lucro,mas tudo contra a ganancia

  7. José almeida says:

    O mais repugnante e ameaçador é que grande parte das pessoas gosta deste tipo de noticias. E este ano há eleições…..
    Recordo a crónica da Carla… ‘O Que Me Salva’.

  8. O povinho gosta…o correio da manhã vende!

  9. niko says:

    por algum motivo somos o caixote do lixo da Europa

  10. mjoaorijo says:

    E não foi só o CM, foram lá outros fazer a sua reportagem à pobre senhora.

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