Postal de Pamplona (Iruña) #3

«Si nos roban el futuro, asaltaremos el presente»

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Pamplona está muito mais bonita do que me lembrava. E mais ‘roja’. E mais feminista. Nisto as cidades não são como as pessoas, quero dizer, algumas cidades e algumas pessoas. Em qualquer caso parece-me que as cidades envelhecem melhor que as pessoas. Pamplona está mais bonita agora que há 19 anos. Ou se calhar sou eu que a vejo com olhos diferentes. Olhos de alguém que já não tem 29 anos e tem muito mais paciência. E calma. E menos certezas. E tudo isso que é necessário para apreciar melhor as coisas. Algumas delas, pelo menos.
Acordei tarde, depois de me ter deitado às cinco da manhã, cheia de comida, de bebida e de risos. O dia estava glorioso quando abri a janela e vi os pirinéus aqui mesmo em frente, ainda com restos de neve. Já não me despedi do Luís, nem do Manolo. Por sorte (para mim, que estava a pensar apanhar um táxi até ao centro da cidade, porque estava demasiado calor para caminhar àquela hora) ainda encontrei o Jesus, o Mariano, a Carmen, o Andoni e o Jon à saída do hotel. Despedi-me dos dois últimos e fui com o Jesus levar o Mariano e a Carmen à estação dos comboios. Aqui não chega o Ave. E assim vão num comboio não tão rápido até Madrid e depois daí apanharão o Ave até Sevilha. Seis horas e meia para cruzar de alto a baixo o país. Podia ser pior, penso eu, que gosto de andar de comboio.
Quando os deixamos na estação são quase três da tarde. Bebemos um café e uma água e a seguir o Jesus deixa-me no centro. Combinamos encontrar-nos às oito, mais a Txus, na mesma esplanada de ontem. Está um calor imenso, mas as ruas do centro histórico são estreitas e o sol penetra nelas com alguma dificuldade. Primeiro vou ver a sequoia gigantesca que está no jardim da Diputación. Parece que é um dos exemplares mais antigos da Europa. É muito bonita. Muito alta. Preciso de pôr o pescoço todo para trás para ver o modo como os seus ramos rompem o céu. Fico ali um bocado a pensar que as árvores são dos seres vivos mais bonitos que pode haver (para mim, quero dizer). Testemunhas sossegadas e verdes das passagem do tempo e das coisas que os homens vão fazendo.
A seguir entro na plaza del Castillo, grande e a esta hora, sob este calor, praticamente vazia, a menos que consideremos os cartazes que anunciam políticos como se anunciam sabonetes. Dia 24 de Maio serão as eleições em Espanha para os muncípios e as autonomias. Antes do fim do ano realizar-se-ão as eleições gerais. Uma breve sondagem, entre a amostra (nada representativa, porém, já se sabe) dos meus amigos espanhóis, diz-me que o Podemos vencerá. A ver vamos. Se só votassem os meus amigos, desde o País Basco até Sevilha, o Podemos venceria, mesmo se eles (como eu) têm algumas dúvidas sobre este movimento. Mas a necessidade de mudança é tão grande que se abraça esta possibilidade, apesar de todos os ‘mas’. Nesta tarde, Pamplona está, então, cheia de cartazes. Há muitos partidos políticos e cada região tem os seus próprios, além dos que existem em todas e das mil combinações possíveis que se podem fazer com eles.
A mim interessam-me minimamente estes cartazes eleitorais que apresentam os políticos como sabonetes nas prateleiras de um supermercado qualquer. Estou mais concentrada no que têm as paredes para me dizer. E convenço-me que Pamplona é, pelo menos nas paredes, uma cidade ‘roja’. ‘Roja’ e feminista. Ontem a Elvira disse-me que as mulheres bascas têm fama de ser ‘duras’. Pois bem… duras ou não, não há nenhuma dúvida que sabem bem o que querem e como e por quê devem lutar. ‘Bien hecho, compañeras!’. Vou nestas conversas com as paredes, como sempre, reparando em tudo o que me dizem – e aqui é muito – quando dou de caras com o Che, pintado numa porta. Em frente estão três homens a beber cerveja e aproximo-me deles a perguntar se me tiram uma fotografia ‘con el Che’. ‘Pues que si, mujer, como no?’ diz-me um deles e levanta-se. Finge que me vai fugir com a máquina. Os outros dois riem-se e eu digo-lhe no meu castelhano macarrónico ‘olhe que não vai longe, a máquina não vale nada’. Ele ri-se e tira-me uma, duas, três fotos, ‘con el Che’. Numa delas ergo o punho e ele ri-se. Digo-lhe ‘muchas gracias’ e ele responde, ‘pues de nada, mujer, con el Che siempre’.
Mais tarde a Txus e o Jesus hão-de explicar-me que o que está escrito debaixo da fotografia do Che, ao lado da foice e do martelo, não é uma coisa especialmente positiva. E que amanhã antes de entrar no avião, os serviços secretos de Espanha me vão prender. E a eles também, por serem meus amigos. Explicam-me tudo muito bem. Eu compreendo. Mas sou estrangeira, é como se não soubesse o que está escrito. De certeza que me vão desculpar, os dos serviços secretos. Só não vos conto, para não ficarem a saber tanto como eu e não começarem a ser objeto de interesse por parte da polícia espanhola. Mas agora, enquanto continuo a caminhar e a conversar com as paredes, ainda não sei nada disto. Estou exatamente como vocês, portanto. Pelo menos, como a maior parte.
As ruas estão relativamente desertas e deambulo por ali e por aqui, reparando nas janelas, nas varandas, nos cartazes pendurados que pedem silêncio aos que ‘se van de copas por la noche’. Paro um pouco na praça mais importante, por assim dizer, do San Fírmin, a plaza Consistorial, bebo uma água e um café e fico por ali a imaginar aquele lugar, que me parece tão pequeno, com milhares de pessoas na noite de 6 para 7 de julho. Há umas fotografias numa parede que ilustram isto, mas assim mesmo, parece-me impossível que um lugar tão sossegado se possa transformar de repente num sítio para onde toda a gente deve confluir. E conflui mesmo. A culpa disto é do Hemingway, já sabemos. Pelo menos a culpa que venham americanos e australianos e mais não sei quanta gente de todos os sítios, para beber vinho, correr atrás e à frente de touros. Não sei que pense. Por mais que goste do Hemingway, isto de certeza que não farei.
Continuo depois pelas ruas estreitas, que se parecem todas, devo dizer, até chegar à praça em frente à catedral. Sento-me num banco em frente à igreja. Ao lado há uma esplanada onde muita gente bebe e fala muito alto. Um homem, com ar de turista (muito mais ar de turista que eu) aproxima-se e senta-se ao meu lado. O banco é grande, mas ele deixa uns meros 20 cm de distância entre nós, ao sentar-se. Ao princípio penso em afastar-me. Mas, afinal eu já ali estava, e ele apenas se senta, muito calmo, como se não se desse conta do ruído da esplanada. Nem de mim. Fecha os olhos e deixa-se estar ali. Ao pé de mim, ainda assim. Os dois como se nos conhecessemos há muitos anos, numa familiaridade qualquer que não sei descrever. Não falamos, mas aparentemente partihamos a mesma sensação de tranquilidade que têm aqueles que estão de férias… e de repente penso que é exatamente isto que sinto, agora mesmo, sentada neste banco, ao lado de um estranho muito calmo, a olhar para a catedral de Pamplona… que este dia é como um mês inteiro de férias. Não consigo explicar melhor que isto. Mas sinto exatamente isso, que descansei um mês inteiro, neste dia, sentada num banco em frente a esta catedral.
Levanto-me reconfortada e avanço pelo lado esquerdo da igreja. A praça San Jose abre-se à minha frente, silenciosa e verde, com o murmúrio da água em fundo. Penso que é demasiado bonita toda esta calma, toda esta frescura no meio de uma cidade. Do lado esquerdo da praça está um convento de Carmelitas. Compreendo-as bem, se querem saber. Fora do mundo. Pouco contactando com as pessoas. Silenciosas. Na porta está um horário. Parece que abre às 7h45 nos dias de semana e aos fins de semana um pouco mais tarde. Não me ocorre nenhuma razão para que um convento tenha um horário na porta, ainda mais um convento de Carmelitas, mas estou certa que alguma haverá. Penso no silêncio dos conventos e dos mosteiros. Se não fossem a religião e aqueles horários absurdos para uma noctívaga como eu, talvez gostasse de viver assim, ali mesmo na praça San José, Iruña.
Vou até ao Ríncon del Caballo Blanco, por acaso, porque é logo ali à esquina da praça, depois de se passar um arco, antes do qual, a uma janela, uma rosa ‘roja’ me acena. Cheiro-a e chego ao Ríncon. Não está cavalo branco nenhum e muito menos um príncipe. Não me surpreendo, claro. O normal. Mas está muita gente, quer na grande esplanada do café, quer deitada na relva, sentada nos bancos. Sento-me eu (outra vez) num dos bancos, debaixo de uma grande árvore com um tronco cheio de rugas, não sem antes ter espreitado as muralhas, ou o que delas resta ou o que delas reconstruiram, que estão logo abaixo. O calor vai-se esbatendo com a brisa fresca que não sei de onde vem, mas me sabe muito bem. Fico por ali, a fazer de socióloga. Quero dizer, a olhar para as pessoas, a advinhar-lhe os hábitos, a escutar as conversas até serem horas de descer e alcançar de novo a plaza del Castillo.
Quando a Txus e o Jesus chegam falamos das eleições, da situação em que vivemos, nós, os cidadãos da Europa do Sul, das semelhanças entre os dois países no que diz respeito aos cortes orçamentais, ao recuo do estado social. Falamos também da esperança que temos que tudo isso mude. Que comece a mudar este ano, que há eleições nos dois países. Mais em Espanha e mais cedo que em Portugal, mas assim mesmo, temos ambos a possibilidade de tentar (pelo menos tentar) mudar as coisas. Tirar o poder, ao menos o poder absoluto, a estes que nos roubam o futuro, como vi escrito numa pequena nuvem recortada, de papel, colada numa parede. Jantamos depois, rimo-nos, falamos mais de política, um bocadinho de trabalho, bebemos uma cerveja. Assaltamos o presente.

Comments

  1. Rui Silva says:

    Também gosto muito de Pamplona. Das suas tradições e da sidra e das touradas.

    cumps

    Rui SIlva

  2. eu de Pamplona gosto. de touradas e de cidra é que não :/

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