28 de Maio de 1975

Se o de 1926 começou em Braga, este teve como álibi uma história passada em Coimbra.

Em meados de Maio frequentava a sede do MRPP em Coimbra, Av. Fernão de Magalhães (onde hoje Consulado de S. Tomé e Príncipe), um indivíduo, ex-comando na Guiné, que começou a tornar-se suspeito. Vai daí um belo dia alguém decidiu considerá-lo mesmo um agente provocador fascista, da CIA ou algo que o valha, e foi simpaticamente convidado a ficar por ali, sujeito a umas perguntas sobre as motivações dos seus comportamentos.

Vigiado à vista (estava detido com tanta eficácia que tinha conseguido apanhar uma lâmina de barbear abandonada e tentado cortar os pulsos), no alvorecer do dia 26 de Maio (penso eu de que) ao preparar-me para dormir depois de uma noite de colagens (contexto histórico: o MRPP tinha sido proibido de concorrer às eleições, e era por tabela um partido ilegalizado) ouço a porta da rua bater, não fazia sentido, e constato que o camarada com a função de vigilante ressonava. O indivíduo era deficiente de guerra, coxo, eu na altura corria umas coisas, quando cheguei à rua já não o vi.

Por sorte e cansaço no dia seguinte só dormiu na sede, tanto quanto me recordo, um funcionário, controleiro distrital. Nesta parte a memória falha-me mais, sempre são 40 anos, mas fui avisado mesmo a tempo de que a sede estava ocupada pelo COPCON. Não foi só a sede, alguns dirigentes andaram a saltar por telhados e tinham-se dirigido a Lisboa para narrar o sucedido (o PREC com outras comunicações teria sido outra coisa), e passei à clandestinidade, o que um ano depois do 25 de Abril teve a sua ironia. Sabíamos que o indivíduo andava num jipe da tropa a passear pelas ruas na tentativa de identificar de quem se lembrasse.

Esta narrativa é uma mera memória pessoal, sem sequer consultar o meu arquivo, sem identificações, embora possa acrescentar que voltei a saber do dito indivíduo muitos anos depois: chulo de profissão, assassinou uma prostituta, cortou-a de forma a caber numa mala e lançou-a ao Mondego. Não sei se já cumpriu a totalidade da pena.

E conto-a porque faz hoje 40 anos e por via deste incidente, precisamente quando esses dirigentes se encontravam numa sede aguardando Arnaldo Matos, aconteceu em Lisboa algo que só tem paralelo numa célebre operação repressiva da I República que limpou a CGT, e aqui exproprio uma publicação no Facebook da Paula Godinho:

Convém recordar que depois do 25 de Abril continuou a haver prisões políticas. Aurora Rodrigues, que fora presa e seviciada pela PIDE-DGS em 1973, voltaria a Caxias, desta feita levada pelo Copcon, há precisamente 40 anos, numa operação de detenção de 432 militantes do MRPP: “Eu estava na sede nacional, na avenida Álvares Cabral e tinha saído. Era ao princípio da noite e eu estava a subir a Álvares Cabral em direcção ao Largo da Estrela, quando vi parar as berliets e outros carros da tropa. De lá saíram os comandos, com as metralhadoras em punho e a correr com aquele passo de ataque, em corrida, a bater com os pés.
Ao ver aquilo percebi logo o que era e só tive tempo de atirar uma pasta com documentos do MRPP para um terreno, que ficava atrás de um portão, entre a sede nacional e o Jardim- Cinema. Não sei se alguém apanhou aqueles documentos, provavelmente desfizeram-se com a chuva. Virei para trás, para não me encontrar com eles, não sabia se havia de ir para cima ou para baixo, só que eles apanharam-me. Eu não ia sozinha, ia com o Arnaldo Matos, a mim não me identificaram, mas identificaram-no a ele e prenderam os dois.
Os comandos invadiram a sede e fizeram entrar as pessoas que lá encontraram para as berliets, umas camionetas com lona a toda a volta e bancos corridos. Era de noite e as pessoas gritaram, protestaram, até para chamar a atenção de quem passava na rua, embora aquilo que estava a acontecer fosse mais que notório. Não sei se as pessoas vieram à rua nessa altura, porque eu estava dentro da berliet e a lona não deixava ver nada. Como nós gritámos, eles dispararam uma rajada de metralhadora para o ar, dentro da berliet. Dispararam connosco lá dentro, o que foi aterrador. A seguir levaram a berliet, onde eu estava, para um sítio onde havia uma manifestação que nos era hostil. Puseram a berliet no meio dessa manifestação e eu só me lembro de pensar “É agora”, porque os manifestantes começaram a bater na lona, a gritar insultos e ameaças, porque eles sabiam quem é que estava ali e pensei que íamos ser linchados.

Depois chegámos lá dentro a Caxias e, tal como na primeira prisão, não nos tiraram as coisas à entrada, a revista só foi feita depois. Fomos logo levados para uns subterrâneos, que eu não sabia que existiam, porque da outra vez só tinha visto os pisos superiores. As mulheres ficaram numa cela grande e os homens noutra. Não os víamos, mas acho que ficava perto.

Mais tarde contaram-nos que os guardas prisionais atiraram gás lacrimogéneo para dentro da cela dos homens. A nós, molharam-nos com uma agulheta de alta pressão, como as dos bombeiros, que ainda hoje se usa em algumas cadeias para acalmar os presos. Nós, nervosas propriamente não estaríamos, o que estávamos era indignadas. Éramos muitas mulheres, havia algumas crianças, entre as quais os filhos do Arnaldo Matos, que foram também presos e ficaram connosco. Ficámos todas molhadas e, como a água não escoou, ficou no chão da cela até quase aos joelhos.
Os guardas estiveram ainda durante bastante tempo com a agulheta de alta pressão. Na cela, só havia uma casa de banho, daquelas casas de banho turcas. Quem ainda não tinha destruído o bilhete de identidade, fazia-o ali e mandava-o lá para dentro, o que entupiu a casa de banho. Depois, os guardas puseram colchões naquela cela, cheia de água, no meio da maior confusão, porque tinham sido presas muitas pessoas, à volta de quatrocentos e trinta, entre homens, mulheres e algumas crianças.
Ali ficámos naquelas condições, sem comer, sem água para beber, todas molhadas e em cima de colchões encharcados. No dia seguinte, levaram-nos para a identificação arrastadas. Foi quando me tiraram uma fotografia, de frente, de perfil e de lado, tal como as da PIDE. Lembro-me mais dessa fotografia, do que da que me tiraram na minha primeira prisão. Essa fotografia há-de estar nalgum arquivo, entre os artigos de quem fez aquela operação.

(Aurora Rodrigues, Gente Comum, uma História na PIDE, Castro Verde, 2011).

Se a minha participação aldeã no caso foi um fait divers, o que se seguiu aguarda tratamento historiográfico. Mas fique a memória, que deixo sobretudo ao povo de esquerda mais novo: aqueles tempos não foram vermelho contra branco, o que mais teve foi lutas e matizes. Acabaram por ganhar os cor-de-rosa seguidos e alternados pelos laranjas. E aqui, nestas cores, há mesmo uma lição para o presente e sobretudo para o futuro, seja qual for a cor da camisa do neoliberalismo.

 

 

 

Comments

  1. Não compreendi na altura o 25 de Abril, nem o PREC ou sequer o 25 de Novembro. Mas ainda hoje tenho dificuldade em perceber o porquê da animosidade entre PCP e MRPP. Porque supostamente deveriam ter um inimigo que comum que os obrigasse a deixar de lado ódios ou rivalidade. Isso aconteceu apenas após o 11 de Março quando julgaram poder alcançar o poder, ou já existia antes de 1974? A PIDE explorou de alguma forma essa animosidade? Seria interessante perceber esse período conturbado na nossa História recente, para lá das datas de 28 Setembro, 11 de Março ou 25 Novembro. Até porque as datas resultam sempre de processos e não o contrário…

    • Nascimento says:

      Uns eram pelo “Bigodes”, outros pelo “Arroz Chau-Chau” ,outros pelas “Bolas de Berlim “( Bona),e outros eram pelo “Nem-Nem” á espra do que “viesse” …resultado: eram todos pelo “Socialismo”!
      A malta do MRPP era gira. Andavam todos de boininha á Mao. Cabelo á “operário”, e alguns usavam só fato de macaco! Tinham “amigos”. Quem? o PS….
      Aqui ,no ” deserto”, eram assim aqueles tempos.Quando aparecia a brigada Brejnev ( eram uma vintena) ,era chapada que só visto.
      O Barroso? esse vivia com a tia ou a avó ( ja passou tanto tempo),na avenida dos riquinhos, em Cacilhas/ Almada…ui, tanta história….

  2. António Almeida
    Naquela altura estava o pcp no poder.
    E também todas as greves eram reacionárias , e poucas diferenças havia entre as práticas fascistas e as do pcp.
    Foi aí que eu aprendi “se queres conhecer o vilão põe-lhe o pau na mão”

    • “E também todas as greves eram reacionárias”

      Ó João, faça juz ao seu conhecimento do PREC, haverá mais gente por aqui que conhece pouco dos acontecimentos.

  3. O MRPP em 1975 era composto por meninos bem, que faziam o jogo do CDS e de outras forças reaccionários. Lembro-me muito bem, pelo menos em Coimbra, onde estudava. Não fui UEC, não sou nem nunca fui comunista. Porém, a verdade é esta. Como exemplo, veja-se onde param esses MRPPs. Todos enfeudados ao capitalismo e aos seus benefícios.Exemplo: Durão Barroso, entre milhares de oportunistas falsários e fingidos.

    • Obrigado pela parte que me toca.
      Já agora, além do Barroso, e antes de eu começar na Zita Seabra e acabar no Espada, esse “todos” inclui quem?

  4. Kropotkin says:

    O Senhor João bem que podia fazer a história do PREC em Coimbra, começando pelo seu centro nevrálgico, o largo da Sé Velha, com as suas figuras revolucionárias castiças (o mítico “Che Guevara”), MR’s, PCP’s, e queques, todos em pancadarias homéricas e com epicentro no mítico café Oásis, onde o bom do Arsénio veio acabar com os autocolantes que forravam os azulejos, património mundial da humanidade, crime de lesa majestade revolucionária e patriótica. Tenho dito. Nessa altura, andava eu no Eugénio de Castro e, putos, já discutíamos, quase à porrada, o julgamento do Bando dos Quatro, na China, e discutíamos, em RGA nas aulas de trabalhos oficinais, ou lá o que era, se era ou não revolucionário fazer carrinhos de rolamentos a motor e de seguida íamos para casa ver os Pequenos Vagabundos e comer pão com manteiga. Mai nada!

  5. As religioes e credos próximos são sempre os mais inimigos.(geovas , catolicos, evangelicos) mussulmanos de varias seitas. Faz parte do processo e quando se anda com a cabeça cheia de fantasias (o povo unido jamais será vencido, os ricos que paguem a crise, greves de semanas e até meses para derrotar o “capitalismo”) claro que a irresponsabilidade colectiva só poderia dar o que deu -bancarrota.Triste é que muita gente volta sempre aos mesmos erros mesmo que tenha exemplos que é mau.

    • Nascimento says:

      O bom mesmo é estar quieto e votar no Portas ou Passos? Ou Salazar? Ai pá , esse já morreu, embora os seus cães de fila ainda vomitem por aqui. Cheira a anarca de sofá…

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