Quer um cardiologista? Vá a Fátima

Carta aberta à Dra. Emília Barbosa (Hospital de S. João)

Dra. Emília Barbosa,

Não me conhece nem eu a si, mas posso dizer-lhe que não vou esquecer o seu nome nos próximos anos e espero que também não se esqueça do meu.

Na consulta de cardiologia que o meu pai hoje tinha agendada com a senhora, no Hospital de São João, no Porto, e que já começou com uma hora e meia de atraso porque a doutora agenda consultas para um horário prévio àquele a que efectivamente lhes dá início, e pouco lhe importa quão penoso pode ser para um doente debilitado esperar por si, nessa consulta, dizia eu, a senhora começou por repreender o meu pai por obrigá-la a ter de “mandar desinfectar o consultório” por ter entrado lá com “o sangue todo contaminado com um micróbio”.

Como sabe, ou saberia se tivesse consultado o processo com mais vagar, o meu pai é um doente renal, cuja vida depende da realização de diálise peritoneal. Estes pacientes têm um risco altíssimo de infecções. No caso dele, o serviço de Nefrologia desse mesmo hospital havia detectado indícios de infecção, rapidamente tratada, e já totalmente curada no momento em que o meu pai se apresentou na sua consulta. Repreender um homem doente e debilitado por obrigá-la a “desinfectar o consultório” não só é incorrecto do ponto de vista médico (bastava ligar para o serviço de Nefrologia e falar com um colega, se lhe custa muito ler o processo), mas lamentável do ponto de vista humano.

Dizer-lhe que deveria “lavar-se bem” já foi insultuoso, mas a minha mãe, que sempre acompanha o meu pai nas consultas, e que recebeu formação por parte da Nefrologia para fazer diálise peritoneal ao marido, respondeu-lhe muito bem, dizendo que não aceita lições de higiene de ninguém, ela que tem muito presente a sua responsabilidade como cuidadora de um doente crónico.

O meu pai é um doente em estado grave, sabemo-lo nós, os seus familiares, e é nosso compromisso proporcionar-lhe as melhores condições ao nosso alcance, assim como o é tentar alegrar-lhe os dias, dando-lhe esperança. Dar esperança não significa mentir-lhe, prometer-lhe uma cura milagrosa, mas dar-lhe motivos para querer sempre um dia mais e acreditar que esse dia é possível. A família e amigos do meu pai têm feito um grande esforço para alimentar essa esperança e, felizmente, temos encontrado sempre médicos e demais profissionais de saúde que entendem a nossa preocupação e colaboram connosco.

A doença do meu pai, sobretudo cardíaca mas que foi tendo consequências noutros órgãos, já dura há mais de trinta anos e nós aprendemos a viver com ela e a desfrutar de cada pequena vitória. Talvez dizer-lhe isto seja uma perda de tempo porque a sua resposta áspera, aquela que deixou o meu pai tão chocado – “Não posso fazer nada, a válvula está gasta” – é indicadora de que sensibilidade e empatia não são qualidades que possua. Em qualquer caso, não posso deixar de dizer-lhe que não lhe reconheço o direito de, sem consultar a família, retirar desta forma esperanças a um doente envelhecido e debilitado.

É certo que os seus prognósticos nos merecem pouca credibilidade. Que diriam os seus colegas da Nefrologia (que têm insistido na necessidade de reduzir ao mínimo os líquidos que o meu pai ingere, sobretudo para poupar-lhe o coração) se soubessem que a cardiologista que o segue lhe disse para “beber muitos líquidos, senão as tensões não sobem”?

Mas aquilo que me leva a escrever-lhe esta carta pública, assim como a enviar, já amanhã, uma descrição do ocorrido à directora do serviço de Cardiologia do HSJ, e a apresentar queixa na Entidade Reguladora da Saúde, é tudo o que descrevi anteriormente mas em particular a sua resposta à minha mãe quando ela lhe perguntou por que motivo iria agendar a próxima consulta só para Janeiro de 2016. Como sabe, a Dra. Emília Barbosa respondeu-lhe “Olhe, eu não faço milagres. Vá a Fátima.” Perante a indignação da minha mãe, que lhe disse que não era crente, a Dra. Emília Barbosa rematou com um inaceitável “Mas fazia-lhe bem.”

Fique sabendo, Dra. Emília Barbosa, que não esperamos milagres do Serviço Nacional de Saúde, embora já tenhamos sentido que muitos dos seus profissionais os fizeram, ao longo destes anos. Cresci a acreditar que, se não perdi o meu pai aos oito anos, foi graças ao cirurgião António Santos Graça, um profissional extraordinário desse mesmo hospital e um homem risonho e amável. Ou talvez esperemos milagres, sim, mas milagres que saem de mãos tão humanas quanto as nossas, capazes de dar o melhor de si pela salvação da vida de desconhecidos. Esperamos, sim, profissionais capazes de reconhecer em cada utente um ser humano cuja dignidade jamais pode ser posta em causa e que merece um tratamento competente e respeitoso, independentemente da sua condição económica e social. Quem não é capaz de fazê-lo não deveria integrar o SNS. Quem não é capaz de fazê-lo não honra a mais nobre das profissões, a que permite salvar vidas. Não precisamos de Fátima para nada, Dra. Emília Barbosa, apenas que a senhora, enquanto profissional do SNS, faça o seu trabalho.

Pedirei que seja atribuído ao meu pai um outro especialista em Cardiologia, porque, sinceramente, acredito que a Dra. Emília Barbosa é a excepção à regra, e que não há mais nenhum profissional nesse serviço que mande um doente em consulta rezar a Fátima e permitir-se o moralismo grotesco de dizer à sua mulher que a fé católica “lhe faria bem”. A si, Dra. Emília Barbosa, se me permite, far-lhe-ia bem ser mais competente, mais sensível, mais bem-educada, e mais estudiosa do que é o SNS e qual a sua missão.

Estou ao seu dispor para discutir pessoalmente os acontecimentos aqui descritos quando entender oportuno.

Cordialmente,

Carla Romualdo

Comments

  1. pqp. bolas.

  2. M. Pedroso says:

    Muito bem, felizmente que há pessoas conscientes dos seus direitos e que não deixou de se indignar com a incompetência dessa Sra Dra, que se sentem no direito de achincalhar o doente ( seja novo ou velho) lhe devia merecer mais respeito ecompetencia.

  3. José Meireles Graça says:

    Se me permite um desabafo, essa megera não merecia um “cordialmente”.

  4. Mjosé says:

    Carla, para além da minha inteira solidariedade… não deixo passar a oportunidade de lhe prestar uma enorme homenagem pela indignação, por não calar os seus direitos e, sobretudo, por dar voz a tanta gente

  5. Carla, para além dos parabéns pela frontalidade, e do pesar pela situação que atravessa, posso sugerir / pedir que publique também um resumo das queixas que apresentar, e o contacto das entidades a que forem apresentadas? Dessa forma, mais pessoas (começando por mim) poderão pressionar essas entidades directamente, em vez de se limitarem a partilhar no Facebook. Obrigado, Nuno Coelho.

  6. Ana A. says:

    Todos nós somos “crentes”, a começar, por acreditarmos que um médico “só” porque pode e deve salvar vidas, deve ter entrado na profissão com esse único propósito. Sabemos infelizmente que o dinheiro é o grande motor que faz girar o mundo. E neste caso, os médicos assim como, os ministros da saúde, gerem os milagres científicos de acordo com os orçamentos. E depois, há as excepções e encontrá-las, isso sim é o verdadeiro milagre!

  7. tuga says:

    Confirma-se: O habito não faz o monge.

  8. Maria Augusta Santos says:

    Cara Carla, não posso deixar de me identificar consigo e de me sentir 100% solidária com a sua situação. Perdi o meu pai há 7 anos, estando eu nessa época a viver no estrangeiro, e sabe Deus a impotência e o desespero que senti ao ser confrontada com uma quantidade de “profissionais” desse género, sempre q me deslocava a Portugal para estar com ele ou através dos relatos das situaçōes absurdas que a minha irmã me contava e que tinham acontecido na minha ausência, durante os 5 meses de agonia do meu pai em consequência dum avc. Na altura, também reclamava directamente sempre que uma situação destas se verificava e cheguei a escrever à Direcção do Hospital para tentar sensibilizá-la para os comportamentos altaneiros e pouco éticos de alguns dos médicos e profissionais de saúde, sem resultados atempados. É verdade q também me deparei com profissionais competentes e humanos, mas foram a excepção. Admiro a sua postura e a dignidade da sua resposta, bem como as da sua mãe. Melhores votos para a saúde do seu pai e força para continuar a ser como é!

  9. motta says:

    Eu gostava era de viver num país com muitas Carlas (um cumprimento especial também para a Elisabete e os seus postais e afinal de contas para as mulheres do Aventar) e com menos fdp que, diacho, se encontram ao virar de cada esquina!

  10. Óscar wild says:

    🙁

    Infeliz e contrariamente ao que seria, saudavelmente… desejável:
    – São muitas, e – amplamente vastas…
    Estas, “sing/peculariedades” casuais.

    Por exemplo e, com um familiar em médica de família:
    – “Não há nada que uma caçadeira, não resolva…”

    Numa, segunda… vez:
    – “O senhor parece-se-me falar e, repres/apresentar-me problemas de igual ao restante País…”
    Quando na penosa explicação e dificuldade em tomar medicações inúteis…
    Que para além, de não minorarem dores…
    Ainda acabam por dar cabo do resto…

    E principalmente da carteira…
    Onde e, para além de se estar cronicamente doente…
    Para além da aparente impossibilidade em que se façam justiças…
    É primeiramente, preciso… ser-se:
    – Rico…
    Pois nesta situação em que mais se precisa – ganha-se cerca de 30% menos – através e, por reduçãode salarial…

    Onde para e, em descompressão:
    – Lhe, foi… respondido
    Casualmente não falar em nome de ninguém porque de sempre viveu em crise…
    E para mais bastou, um Jesus Cristo…
    Pois bem está à vista e, se percebe:
    – Até onde “E´le”, nos trouxe…

    Duma outra e, em terceira… vez:
    – “Mais um, que vai morrer… bom!”
    Reportando-se em dores sentidas – e, que “naturalmente” não diagnosticadas bem como não assumidas, desde que foi operado:
    – Porque se errar é, humano…
    Para e, neste – tipo de gente – em… classe:
    – Naturalmente, não o… são.
    Não se, mete… tudo:
    – No mesmo, saco… entenda-se!
    Pois que e, para quem lê, e – se identifica é: que tente em fazer, generalizar – para que e, em desacreditações convenientes… claro.

    Não fosse uma situação verdadeiramente dramática e/ou horrorosa e quase que dá, alegria – em se ter lido, aqui esta tão má vivência experimentada na pessoa de seus Pais – transmitida aqui na sua exposiç/denuncia sobre e, acerca – pois é precisa não só, uma imensa coragem bem, como num outro tipo de disponbilidade: para além da fé – que nem todos têem e, que no entanto se acredita que a senhora possua.

    Terminando, homenageio-a… parafraseando-a:

    “Ou talvez esperemos milagres, sim…
    Mas milagres que saem de mãos tão humanas…
    Quanto as nossas,
    Capazes de dar o melhor de si pela salvação da vida de desconhecidos.
    Esperamos, sim…
    Profissionais capazes de reconhecer em cada utente…
    Um ser humano cuja dignidade jamais pode ser posta em causa…
    E que merece um tratamento competente e respeitoso…
    Independentemente da sua condição económica e social.
    Quem não é capaz de fazê-lo não deveria integrar o SNS.”

    E acrescentando… mesmo:
    – Impedidos, de exercerem
    Seja em que, circunstâncias… sejam!

    🙁 🙁 🙁

  11. martinhopm says:

    Carla, não a conheço mas não posso deixar de lhe dar os parabéns pela coragem, frontalidade e clareza desta sua carta. Há que denunciar o que tem de ser denunciado. Felizmente que esta não é a regra geral, mas…
    Oxalá tudo se resolva a seu contento, com as melhoras do seu pai.
    Estou solidário consigo.

  12. Muita força Carla, e muitos parabéns pela coragem de escrever a carta e mostrá-la a todos nós leitores. Tudo de bom para a sua família.

  13. É assim mesmo Carla Romualdo! Há que denunciar publicamente estas tristes posturas, lastimáveis de todo, de profissionais que integram o SNS.
    Só agora vi a relíquia do seu testemunho, e daí, só agora o comentar; mas, mais vale tarde que nunca.
    Com efeito, há por aí gente que não merece vestir a farda que enverga por isto mesmo: não têm vocação para abraçar a profissão que exerce; tampouco para CUIDAR DO OUTRO, e, desses, o SNS não precisa. Rua com eles!!!

    Beijinhos 🙂

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