A decadência de Houellebecq

Comprei na feira do livro o novo do Houellebecq, Submissão. Já tinha comprado há uns o meses o Mapa e o Território que comecei mas entretanto não acabei de ler porque se meteram outras coisas. Submissão é comparativamente mais fácil de ler mas a minha experiência com o Houellebecq não é muita e portanto o meu texto será em parte construído através de uma série de generalizações mais ou menos banais, mas sinto que vale a pena pensar nelas.

A pessoa lê Houellebecq e fica com a sensação de duas coisas: a primeira é que as personagens são todas iguais. Dei uma olhadela à sinopse dos outros livros dele e não me parecem ser diferentes. As personagens principais são sempre as mesmas (homens, introspectivos, com tendências depressivas, que gostam de mulheres, de beber e de comer): só muda o enredo. A segunda é que Houellebecq tem na cabeça uma série de ideias sobre a civilização ocidental (se quisermos ser generosos, sobre as várias civilizações) e os livros acabam todos por ser sobre isso. Aliás, não fiquei com muita vontade de ler os outros, embora queira acabar o Mapa e o Território que penso ser até mais interessante do que Submissão.

Feitas estas generalizações, que valem o que valem porque como disse só li o Submissão e metade do Mapa e o Território, gostaria de me debruçar mais sobre o Submissão. Algo interessante neste livro, e presumo que também nos outros, é que o leitor é facilmente levado a achar que a opinião do narrador é a opinião do autor. Isto é, não só os protagonistas são todos iguais, na realidade eles são todos o Houellebecq. Isto pode ser, admito, uma enorme falácia. Eu evitei ler entrevistas do Houellebecq e as que vi de relance não me agradaram muito. Aparentemente o senhor acha-se um perseguido, uma espécie de Charb mas em versão cobardolas. Se assim for, é uma pena porque está a confirmar o que eu temia: que as personagens principais são no fundo, uma representação – ou talvez uma caricatura? – dele próprio. Por outro lado, reconheço talento e inteligência a Houellebecq e portanto custa-me a acreditar que ele acredite verdadeiramente nas coisas que põe a personagem principal (no caso de Submissão, um professor universitário chamado François) a dizer.

O livro sai como se sabe numa altura explosiva porque foi lançado precisamente no dia dos ataques ao Charlie Hebdo e começou a correr a ideia de que o livro retrataria situações muito semelhantes aos ataques, e que teria muito a ver com o Islão e com o perigo que ele supostamente oferece e tudo ficou arranjado para que o sucesso de vendas fosse considerável. Basta pensar que em Portugal o livro sai em Março e um mês depois já tinha segunda edição. Parece, pelo que li, que estava toda a gente à espera que Houellebecq tivesse construído um ataque gigantesco ao Islão e aos muçulmanos em França. Mas não é isso que acontece. Houellebecq não construiu, ao contrário daquilo que muitos inicialmente pensaram, uma narrativa apocalíptica ou distópica, de ditaduras e terrorismo e perseguição. Não o constrói porque isso não seria minimamente plausível (o que ele escreve também não é, mas já lá vamos). O livro é “soft” como me disseram e é precisamente por isso que é mais perturbador: é essa plausibilidade, ou aparência de plausibilidade, que o torna aos olhos do leitor mais provável, mais realista. Neste sentido, Houellebecq envolve-se numa tentativa de  convencer o leitor de que aquilo podia mesmo acontecer. Esse é um dos objectivos do livro e só é conseguido porque Houellebecq faz o possível para não exagerar. Há um partido muçulmano que ganha eleições – ou seja, chega ao poder em pleno direito do exercício democrático – e depois leva a cabo uma série de reformas no sentido de fazer com que a França funcione simultaneamente com a lei republicana e com a sharia – sendo que o que vai acontecer no futuro, embora isso não seja mostrado no livro, é que a laicidade republicana irá desaparecer e a lei islâmica acabará por se impor.

O livro é islamofóbico? Claro que é. Nem podia ser de outro modo. Os argumentos de Houellebecq não precisam de ódio ou mesmo hostilidade ao Islão, mas precisam de recorrer a uma série de clichés sobre o islão e os muçulmanos. A forma como ele apresenta estes clichés é muito engenhosa: todos eles são repetidos por personagens muito inteligentes por quem o narrador, que tem pouca consideração pela humanidade em geral, sente um certo respeito. Automaticamente, o leitor é levado a pensar que estas personagens são “autoridades” e “sabem coisas” – logo é mais fácil ficar convencido pelos seus argumentos do que por aquilo que o narrador pensa. O narrador que de resto admite nem conhecer bem as práticas do Islão. Mais do que isso o livro é altamente sexista. Não faço ideia se Houellebecq pessoalmente também o é, mas é evidente que o sexismo nos livros deriva essencialmente de duas coisas: a ideia de que a emancipação da mulher está a levar à destruição da civilização ocidental (porque está a “destruir a família nuclear” o que leva a quedas demográficas) e também porque, claramente, Houellebecq não consegue, e provavelmente não quer conseguir, escrever mulheres. Aliás, Houellebecq tem muita dificuldade em colocar-se num estado de espirito que não seja o daquela sua personagem-tipo, o narrador que já descrevi antes. Todas as outras personagens que têm um papel importante no livro (em regra geral, homens) são bastante semelhantes. O tipo depressivo, obcecado por sexo, que gosta de comer e beber mas que é, ao mesmo tempo, um grande misantropo é familiar a Houellebecq e ele escreve-o bem; mas só escreve isso. Em termos de personagens elas não estão lá para serem complexas ou para serem parte das ideias que o livro quer apresentar, mas apenas para as expressar. O que é interessante em Submissão, e também igualmente engenhoso, é que o leitor é levado a achar que o sexismo está ligado ao Islão (Algo que é conseguido através da introdução de situações que propositadamente chocam o leitor) – mas é evidente que a desvalorização das mulheres acontece desde o início, independentemente do Islão ser uma religião estatal ou não. Na realidade, o narrador é, desde a primeira página, mesmo não sabendo o que se vai passar, extremamente sexista.

Todo o livro é aquilo que o inglês descreve muito bem com a palavra “insidious”. Por exemplo, Houellebecq apresenta o candidato muçulmano que se torna Presidente como um homem cheio de qualidades. Um político, na realidade, muito melhor do que qualquer outro que a França teve nos últimos vinte anos. As medidas que ele apresenta são absolutamente inaceitáveis: a introdução de uma rede de escolas muçulmanas que funciona a par do sistema educacional francês e republicano, que ensinaria ás raparigas as lides domésticas e aos rapazes coisas úteis. A introdução de uma forma de distributivismo que levaria a França a voltar aos tempos das pequenas oficinas artesanais familiares em detrimento de empresas maiores. E por fim, é revelado que a ambição de Mohammed Abbes é ser o primeiro Presidente Eleito de uma Euroabia: isto é, da Europa como ela é mas também de países do Norte de África e Médio Oriente que entrariam (e entraram no livro) na União Europeia. Ao mesmo tempo, Houellebecq é peremptório em afastar Abbes de qualquer tipo de movimento extremista ou terrorista. Abbes na realidade nutre apenas “desprezo” por terroristas. Houellebecq aproxima Abbes do Imperador Augusto: o que ele quer é recriar o projecto civilizacional do Império Romano, que abrangia o Norte de África. Está, na realidade, muito mais próximo de De Gaulle e de Mitterrand do que qualquer outro político francês ou europeu. Ou seja, Abbes é uma personagem apresentada como supostamente inofensiva e simpática. Nunca é comparado a terroristas ou extremistas ou líderes religiosos – muito pelo contrário, o narrador e as outras personagens só têm respeito e admiração por ele. Mas a prática revela-se diferente. Na prática, a França está lentamente a tornar-se num Estado Islâmico e a Europa para lá caminha. Ou seja, o ataque ao Islão e o processo de convencimento não se faz descaradamente. Houellebecq é demasiado inteligente para isso. Se ele criasse uma caricatura a história não seria plausível e o livro seria ridículo. Mas não; tudo dá a aparência de plausibilidade. Por outro lado, o narrador fala com algum desprezo de intelectuais de Esquerda e a Frente Nacional é apresentada como xenófoba e racista. Mas ao mesmo tempo que isto acontece Marine Le Pen anda a citar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fala em laicidade e cita Condorcet. Jean Luc Mélenchon e a Front Gauche opõem-se ao novo regime. Neste livro, tanto Le Pen como Mélenchon se tornaram jacobinos contra o novo regime pela defesa dos verdadeiros valores republicanos. Apesar de isso ser apresentado pelo autor como algo ridículo ou insignificante, o leitor verifica que neste contexto tanto Le Pen com o seu Saint-Just como Mélenchon que graças a Deus nem aqui muda, é que têm razão.

No fundo, Submissão é uma armadilha. E é isto que me faz pensar que Houellebecq acredita realmente no valor básico deste livro. Porque Submissão não é um livro sobre o Islão. Submissão é um livro sobre a decadência da civilização Europeia. E é este precisamente o problema. É precisamente aqui que se encontra a fraqueza. Houellebecq interiozou uma série de clichés sobre a decadência da Europa. A tese é simples e muito conhecida: por razões demográficas, a Europa vai ficar cada vez menos povoada e então civilizações mais fortes (fortes não só porque têm mais gente mas porque têm uma base nuclear, a família, a família virada para a manutenção de tradições e de valores, mais forte – e estão dispostos a lutar e a espalhar esses valores) irão conquistar a Europa, irão subverter os valores da sociedade ocidental e a Europa vai, genericamente, acabar. Para Houellebecq a Europa, hoje em dia, assiste a uma ausência de valores, as pessoas estão cada vez mais apáticas e brevemente haverá espaço para o Islão preencher esse vazio.

O problema disto tudo é o seguinte: a personagem principal diz, a uma determinada altura do livro, que “não sabe muito de História”. Nem ele, nem o seu criador. Para Houellebecq a História começa no século XIX. Essas são as suas referências. Zola, Huysmans, Nietzsche. Sendo assim, Houellebecq ignora que a História da Europa e dos Europeus é a História da decadência. Desde a civilização medieval – que Houellebecq acredita ser, em Submissão, o auge máximo da civilização ocidental – que as pessoas achavam que o fim estava próximo. A Civilização Medieval é, por natureza, altamente pessimista porque é altamente apocalíptica: o fim está próximo, o anti-Cristo está para breve, a salvação e a felicidade só se encontrarão num mundo que não é este, que não pode ser este. O Renascimento que foi medieval até finais do século XVI foi uma reacção a isso: mas começou a Reforma e a lógica de decadência esteve sempre inerente a tudo esse processo. Depois veio o século XVII, com a Guerra dos Trinta anos, mais perseguições religiosas. É no século XVII que Hobbes escreve o Leviathan. O que não é o Leviathan senão uma obra de profunda descrença, um tratado sobre a decadência dos homens, dos homens que Hobbes conhecia, que habitavam e morriam e matavam no Continente Europeu? Vem o século XVIII e Frederico o Grande escreve a Voltaire que esta raça humana é terrível, que agora em Paris andam a ler Shakespeare e o Gosto está a decair, e Voltaire escreve Candide onde o Optimismo é rejeitado porque o mundo no geral e a Europa em particular é um lugar de fanatismo, de perseguição, de intolerância. Houellebecq acha que o seu pessimismo é muito original: não podia estar mais errado. O pessimismo nada de tem de original na civilização Europeia porque a civilização Europeia é a história da crença na decadência: só acreditando na decadência é que pode haver uma reacção e a civilização europeia fez-se de reacções. Nem a Revolução Francesa foi optimista: Robespierre escreve provavelmente exausto, que os homens só poderão ser livres quando forem educados e isso nunca acontecer.

O século XIX trouxe a crença no progresso e na felicidade, é verdade. Mas ao contrário do que pensa Houellebecq, não é a civilização Europeia que começa a acabar na primeira Guerra Mundial. É, como mostra bem Stefan Zweig, o século XIX.

A ideia mais interessante de Houellebecq relaciona-se com a questão da apatia que é magistralmente bem ilustrada no livro. Também não é uma ideia nova: as pessoas aceitam tudo, por muito mais perigoso que seja, porque não se interessam, porque há uma ausência de valores, desde que a sua vida não inclua grandes mudanças: desde que a “vidinha” continue. No fundo, é fácil de encontrar exemplos deste estado de espirito no século XX. Mas até nisto Houellebecq teve azar. Dias depois do livro ser publicado, milhões de pessoas saíram à rua para reafirmar um dos valores basilares da civilização ocidental: a liberdade de expressão. Ainda meses antes disso, os escoceses votaram em massa num referendo sobre a independência, demonstrando que quando realmente as interessa as pessoas lutam, debatem e envolvem-se naquilo em que acreditam. Os gregos contrariaram a abstenção para irem às urnas. Estranhamente, no meio de todo o seu pessimismo Houellebecq continua a acreditar que a França é o país mais importante da Europa. É quase comovente esta crença de um misantropo que se auto-exilou na Irlanda.

O livro é muito inteligente. Está bem construído: as suas qualidades encontram-se precisamente no pessimismo previsível que torna o fim do livro absolutamente inevitável mas esmagador. Mas não deixa de ser um daqueles livros que tenta enganar o leitor, e tenta enganá-lo de forma desonesta (ao contrário por exemplo, de Umberto Eco, cujo livro também comprei na Feira, mas que engana os leitores de forma muito honesta porque os ensina a pensar). Houellebecq não percebe de História e por isso as armadilhas que ele monta ao leitor são, apesar de inteligentes, extremamente falaciosas. Sorte a minha na realidade, que teria caído na armadilha se não tivesse andado a ler a e reler o Candide. Houellebecq devia ler mais Voltaire. Devia preocupar-se em tentar mudar o que pode mudar e não com situações hipotéticas, que fingem ser filosóficas, metafisicas mas que são redutoras e simplistas. Michel, o que tu deves fazer é cultivar o teu jardim.

Comments

  1. Lilian says:

    Que resenha mais esquerdopata. Claro que você é de extrema-esquerda (ou será que não existe ‘extrema’ em esquerda, só na direita?). Eu gostei do livro e achei bem realista. A França vai virar Franquistão.

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