Cavaco e o pró-forma eleitoral

O Cavaco Silva de hoje não teria aceitado tomar posse em 1985 à frente de um governo minoritário. Com o que teria inviabilizado uma maioria absoluta do seu partido nas eleições seguintes. Foi com um governo minoritário que Portugal entrou na então CEE, na Europa, como hoje se gosta de dizer. O Cavaco Silva de hoje tem a memória curta. Muito curta. O Cavaco Silva de hoje é um arremedo do Cavaco Silva de 1985. Décadas de exercício do poder retiraram-lhe lucidez e discernimento. O corajoso que em 1985 foi empurrado para a liderança do PSD, que aceitou formar governo e tomar posse em condições minoritárias, tornou-se num político medroso, autoritário e sem estamina. E, pior que isso, capaz de usar o cargo que lhe foi confiado como Presidente da República para condicionar a democracia, para condicionar a liberdade de voto, para condicionar consciências, usando a sua posição institucional para impor os seus desejos. [Delito de Opinião]

Um bom retrato da mão por trás do arbusto, como diria de novo Sócrates. Mas à “coragem” de 1985, chamar-lhe-ia  calculismo, dado o que se sabe da operação “congresso da Figueira da Foz”. 

Ontem ouvi Cavaco vir explicar o seu discurso, dizendo que queria dizer que  a “responsabilidade exclusiva” de assegurar estabilidade é dos partidos. Para além de algo estar muito errado quando, recorrentemente, Cavaco precisa de prestar declarações para esclarecer o que havia dito, há o pequeno detalhe de, em meses anteriores, fontes autorizadas de Belém terem feito saber que Cavaco se recusaria a dar posse a um governo minoritário. Apesar do desdito, no anúncio da data das eleições Cavaco não fez mais do que dar continuidade ao discurso que ele e os seus assessores vieram construindo ao longo do último ano. Cobardemente, veio dar o dito pelo não dito. Mas há memória e até está publicada.

Sobre a situação, António Costa optou por picar Cavaco.

“O professor Cavaco Silva está no fim da sua carreira política já bastante longa. Está a poucos meses do fim do seu mandato e, como ele disse em tempos a propósito de outro Presidente da República [foi o recado de Cavaco a Soares, quando este terminava o mandato de PR], devemos aliviá-lo dos problemas e deixá-lo terminar com a maior dignidade as suas funções” [P]

Ao que Cavaco respondeu dizendo que não comentaria e que eram coisas de campanha eleitoral. O mesmo se lhe poderia dizer quanto às camufladas declarações públicas de apoio ao governo do seu partido. O ponto é que Cavaco perdeu o papel de árbitro há muito tempo, não sendo por acaso que tem o mais baixo apoio popular ente todos os PR.

“Depois de Portugal ter ficado sujeito a um programa de ajustamento que impôs pesados sacrifícios aos portugueses, precisamos de um Governo que tenha apoio maioritário na Assembleia da República, de forma a cumprir as regras comunitárias, no que diz respeito ao controlo do défice orçamental, sustentabilidade da dívida pública e também no que diz respeito às reformas necessárias para a competitividade da economia portuguesa”, alegou.

No entanto, se não for possível o entendimento, “é preciso aguardar”. [Jornal de Negócios

Prepara-se Cavaco para manter o governo em gestão corrente caso não seja possível formar uma maioria no parlamento? No ionline analisou-se a questão e tem base legal. António Costa até foi o primeiro a levantá-la.

“É um outro espírito, crença e vontade de vencer, um optimismo perante o futuro e a convicção de que com trabalho podem ultrapassar as dificuldades. Não encontrei aqui o discurso da desgraça, do miserabilismo, da descrença que encontramos com frequência nos agentes políticos em Lisboa ou na comunicação social”, sustentou.

“Gostaria de convidar os políticos e os líderes sindicais que se fixam apenas nos corredores e gabinetes de Lisboa a virem aqui ao norte, eixo do Douro Vinhateiro, a contactar com as pessoas e os autarcas. Estou convencido que voltariam mais abertos a trabalhar em conjunto, à cultura do compromisso e diálogo para resolver os problemas do país: voltariam menos crispados e até menos violentos na linguagem, porque qualquer um, quando vem aqui, enche a alma, porque o espírito é diferente”, referiu. [Jornal de Negócios]

Esta citação é um exemplo de apoio disfarçado ao governo, onde Cavaco alinha pelo diapasão da maioria, a qual diz que o país está melhor. E de que é que sofre quem chama a atenção para os reais problemas do país? De “desgraça, do miserabilismo, da descrença”. E quem são estes? Os “políticos em Lisboa”, a “comunicação social” e os “líderes sindicais”.

É este o Cavaco que se revela novamente, o tal que nunca se engana e raramente tem dúvidas. Apesar dos erros crassos, como recomendar o BES quando ele já estava falido. Ou das escutas de Belém. Ou todos os discursos em que precisa de se explicar.

Comments

  1. Ernesto Martins Vaz Ribeiro says:

    Cavaco Silva continua igual a si mesmo.
    Não me esqueço das palavras que proferiu à saída do Congresso da Figueira da Foz e que ditaria a sua ascensão política. E para que se não esqueça, aqui ficam: “Eu só vim à Figueira para fazer a rodagem do meu carro”.
    Para mim, esta tirada marca a desfaçatez de um político que se revelou sempre um amante do Estado Novo, mas que em 1985 e durante mais uns anos, deveria manter-se recatado porque a extrema direita vivia camuflada na sombra de uma aurora que se pretendia de liberdade.
    Com a passagem dos anos assistimos ao recrudescer da extrema direita em Portugal e aqui Cavaco limitou-se a deixar cair a máscara.
    E ainda hoje, creio que este não é o verdadeiro Cavaco.
    Se esta situação política cair um pouco mais para o lado para onde está claramente inclinada, veremos, seguramente, um político a reinar infinitamente, tal como um outro no passado ainda recente, até que uma qualquer cadeira o afaste do poder.
    E o que é mais grave, é que parece que estamos num país sem memória.

  2. Victor Nogeira says:

    Com uma grande diferença: este não tem a “sabedoria” nem a estaleca do outro. No tempo do oitro seria por este “despedido” ou descartado de secretário ou ministro … pelo telefone.

  3. Rui Moringa says:

    http://www.tvi24.iol.pt/internacional/charles-michel/belgica-admite-retirar-direitos-politicos-a-quem-tenha-cometido-fraude-fiscal
    Aqui está uma ideia já falada em comentários anteriores.
    Quanto ao Cavaco. É o sinal da nossa mediocridade. Foi votado em eleições e não fomos, como Povo, capazes de ver para além do que revelava, a sua verdadeira faceta.

  4. Cavaco e as vacas.

    • Ernesto Martins Vaz Ribeiro says:

      Fica aqui uma de Amértico Thomaz (era assim que ele assinava).
      “Encontro-me em Azambuja onde acabo de inaugurar duas fábricas completamente diferentes: uma é maior e outra mais pequena”.
      Digam-me então qual a diferença entre este discurso e o das vaquinhas…

  5. Fernanda says:

    Cavaco e as vacas.

  6. martinhopm says:

    Cavaco «um portuguesinho do Portugalinho»! E que até, ao que consta, bebeu parte da sua já proverbial sabedoria (um autêntico homem do Renascimento!) e competência («Nunca tenho dúvidas e raramente me engano», mesmo quando «falo oralmente») ali pelas bandas da António Maria Cardoso. A bem da Nação!

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