Orgulho

Nem sei se devia contá-la, porque há histórias que nos dão vergonha só de vê-las, assistir ao seu desenrolar faz-nos cúmplices do que vimos, e contá-las pode ser uma forma de servir-nos delas, ou isso tememos, que por contar estejamos a instrumentalizá-las e não é isso que queremos. Mas não contar é também como fechar os olhos ao que se viu, negar que tenha ocorrido, e tampouco podemos permiti-lo.

Era uma tarde de muito sol numa rua central da cidade. À porta de um hotel há dois contentores de lixo sempre cheios, muitas vezes os sacos ficam no chão até serem recolhidos. Passo por ali todos os dias, muita gente o faz.

Nessa tarde, à minha frente caminhava uma mulher já muito idosa, de cabelos brancos amarrados, corpo franzino, pernas delgadas e ágeis, um casaco demasiado grande e que parecia desnecessário numa tarde de calor. Caminhava rua acima em direcção ao hotel. À porta, ao lado do contentor, havia um grande saco de lixo pousado no chão. Outras pessoas passavam na rua, turistas sobretudo. A mulher deteve-se junto do contentor e eu soube o que ela ia fazer. Mantinha a cabeça baixa e olhava o saco. Pensei que era o orgulho que a fazia hesitar, havia nela alguma coisa que não se tinha ainda vergado. Por fim, levou a mão ao bolso do casaco, tirou de lá um lenço de papel e com ele a cobrir-lhe os dedos, como se fosse uma luva, abriu o saco e remexeu no seu interior. Retirou o que me pareceu ser um pacote de bolachas, fechou o saco com um nó enérgico e afastou-se com passos rápidos.

Fiquei a pensar por que me impressionaria mais esta mulher do que os outros homens e mulheres que vejo a remexer no lixo, agora que isso deixou de ser tabu na cidade orgulhosa que o Porto sempre foi. E reconheço que o que mais me impressionou não foi a idade nem o género, foi o nojo, a repugnância que ela teve de vencer para tocar no lixo dos outros e dele retirar a sua comida. A mesma repugnância que eu sentiria. E isso irmana-nos para além das muitas diferenças que podem separar as nossas vidas. Podia ser minha mãe, minha avó, minha filha. Podia ser eu.

Comments

  1. mia lu says:

    —– Ou eu……. !!!!
    Triste………..

  2. Aventanias says:

    Raiva de revolta triste.

  3. Konigvs says:

    Eu estou em crer que remexer nos caixotes do lixo, mais do que uma necessidade, é por vezes muito mais um vício como tantos outros. Ir ao caixote do lixo todos os dias é ter um ovo kinder do tamanho de um contentor do lixo para abrir e isso deve ser espetacular pois há sempre surpresas mais ou menos agradáveis. E não há nenhum orgulho nisso, só há é auto-confiança e estar-se a cagar para o que os pensam.

    • ver como os outros says:

      se fosse o caso não teria existido um lenço neste relato….

    • José Peralta says:

      Realmente, o konigvs, demonstra uma “sensibilidade” e um “espírito solidário”, absolutamente comoventes !

      Ditoso Porto, ditosa Lisboa, ditoso País que tais “konigvs” tem !

      A imagem de um “kinder-surpresa” do tamanho de um contentor de lixo à porta de um hotel, enchem-me de desejo e auto-confiança !

      Qual necessidade, qual miséria envergonhada, que leva uma idosa senhora, num dia de calor, a procurar a “surpresa irresistível” de encontrar “coisas mais ou menos agradáveis” como um naco de pão duro, quantas vezes já meio comido, ou uma peça de fruta cervada, bichosa, em rápido caminho para o apodrecimento ?

      Que prazer, dar satisfação a um “vício como tantos outros”, que SÓ passa, sem qualquer perigo, pela inocente busca de “surpresas agradáveis” nos “kinders” gigantes de uma cidade !

      Quem duvida que, se o “vício” não fosse “bom”, “estimulante”, direi mesmo “excelente e gratificante”, haveria tantos “viciados” a satisfazerem-no ?

      Quem diria que, se não fosse o orgiástico prazer de muitas noitadas “bem passadas” dentro de um caixote de cartão ou debaixo de um cobertor, haveria tantos “felizes” sem-abrigo, debaixo de arcadas ou em vãos de porta, ressonando alegre e estentóricamente ?

      Ditoso Porto, ditosa Lisboa, ditoso País que tais “konigvs” tem… .

    • Pedro says:

      Espetacular, meu! Aquela velhinha é adepta do desporto radical do ir ao lixo apanhar coisas espetaculares como bolachas! E ao fim de semana vai fazer surf para o Guincho. Espetáculo, bacano! Olha, quantos anos tens?

    • Renato says:

      Jovem, o teu comentário do ovo kinder vai tornar-se viral. Parabéns, vais ser famoso.

  4. Konigvs, este “gaijo/a” não será um empreendedor daqueles que recebe um chorudo subsídio da UE e emprega jovens com mestrado por ordenado mínimo??… parece-me que sim!

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