Queremos erros novos

 Gervasélio Pimentão

Depois do 25 de Abril e do fim do fascismo o novo sistema político português assumiu o pressuposto fundamental das democracias liberais em que se inspirou: o poder deve estar em última instância nas mãos do povo que pode escolher a melhor proposta política apresentada pelos veículos privilegiados que são os partidos. Em democracia representativa a existência de uma multiplicidade de propostas é fundamental para que haja possibilidade de escolha e de mudança, se considerado necessário. Idealmente, os eleitores que não se revirem em nenhuma delas podem organizar-se livremente num novo partido e apresentá-lo a eleições.
Por infelicidade, as boas intenções dos democratas que viram no sufrágio universal e na liberdade de organização partidária a possibilidade de pôr o poder político a trabalhar para o bem do povo e de o controlar e evitar abusos, não vai de encontro à realidade. A democracia representativa vê-se subjugada ao capitalismo que dirige o rumo das políticas, os partidos são dominados por elites privilegiadas distantes das vivências do resto da população, formaram-se sistemas bipartidários com dois partidos iguais a alternarem-se no poder, é muito propenso à corrupção e à formação de redes de favorecimentos, há um controlo apertado da opinião que é veiculada publicamente pela imprensa que se mantêm dentro de um apertado espectro de opinião aceitável ao ponto de vista do poder. Em relação às ditaduras, as democracias trouxeram melhorias na forma como interagirmos politicamente, mas não conseguiu o que se tinha proposto inicialmente que era colocar o poder nas mãos das pessoas, das maiorias pelo menos, e oferecer uma multiplicidade de propostas que permita seguir caminhos alternativos.

Não queremos com isto sugerir que esperávamos um sistema perfeitinho que um mundo demasiado simplista acomodaria sem grandes incómodos. Não é disso que se trata, mas sim de atentar ao que de fundamental a democracia se propõe fazer, dar o poder ao povo, e que falha repetidamente, sem excepções. Não será este o ponto de partida para qualquer reflexão que se deva fazer sobre o sistema político que desejamos? Recusando, certamente, a ideia que nos parece bastante enraizada de que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Ou seja, que o sistema não é perfeito mas que todos os outros são piores. Ou que o sistema tem problemas mas que se devem sobretudo a algumas pessoas que por vezes abusam dele. Ou ainda que estamos suficientemente bem para arriscar transformações que poderiam ser perigosas e levar a novos autoritarismos. Estas asserções levantam tantos problemas que nos deviam, no mínimo, fazer desconfiar. Ao invés, o que queremos propor é uma outra forma de pensar com que certamente a grande maioria das pessoas poderá estar de acordo. Afinal, a política é uma coisa que afecta a totalidade das nossas vidas e merece um esforço da nossa parte.

Sem entrar, de momento, em teorizações políticas, parece-nos que o que está errado na relação eleitor-eleitos é não haver aprendizagem com o erro e mudança a partir dessa aprendizagem. Parte-se de expectativas muito baixas porque o sistema parece demasiado imponente para ser mudado e acaba-se aceitando a perpetuação do que nos parecem ser os males menores. Aprender com o erro pode significar para um jovem eleitor votar no partido do bipartidarismo que está na oposição, mas com o decorrer da legislatura entender que ele é basicamente o mesmo que a sua cara metade no governo. Significa mudar o voto para a esquerda porque aparentemente é a única alternativa séria dentro do sistema. Mas observar com atenção as experiências internacionais dessa esquerda – não havendo paralelo nacional -, como o recente referendo na Grécia que levou a um desfecho oposto ao que foi determinado pela votação, e perceber que ela de facto não oferece a saída que promete. Votar em partidos pequenos fora do sistema e finalmente perceber que eles só existem de quatro em quatro anos na altura das eleições. Sair do sistema eleitoral deixando de votar como sinal de protesto para perceber que por maior que a abstenção seja, o sistema a ignora. Há que procurar erros novos e largar os antigos até que as expectativas subam o suficiente para entender que o que falha é o próprio sistema, que não há solução dentro dele. Sendo um sistema de delegação de poder que na sua essência nos afasta desse poder é preciso termos a expectativa de controlarmos directamente o poder sem nos substituirmos aos que agora o controla para, lá está, não voltarmos aos mesmos erros indefinidamente. O feudalismo, o absolutismo e as ditaduras já foram sistemas inultrapassáveis. Só um amante entorpecido da representação com umas expectativas de melhoria muito deprimidas poderá afirmar que é o menos mau dos sistemas conhecidos e que daqui não saímos.

Comments

  1. JgMenos says:

    Nada como não dizer claramente ao que vem para contribuir para a mudança!

  2. Fala-se em ultrapassar a democracia e em não tomar o poder, embora a intenção fosse mais fazer pensar no porquê da repetição incessante dos mesmos erros do que propriamente apontar caminhos.

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