Postal de Wageningen #1

as coisas ficaram sem ordem, pensei eu por cima das nuvens

escrevi-te um livro inteiro dentro do avião. os olhos fechados. e tu a falares para dentro de ti mesmo, como sempre fazias para minha irritação. escrevi um livro inteiro sobre ti. acho que fomos tudo o que duas pessoas podem ser uma com a outra. menos inimigos. isso nunca. continuo a achar que és um tipo estranho como na primeira vez em que te vi no café da praça onde desemboca a rua onde moravas. gostava de poder ser capaz de escrever realmente esse livro que escrevi hoje dentro da minha cabeça, por cima das nuvens, sem ordem nenhuma. gostava de estar outra vez contigo, em silêncio, no sofá da minha sala, cada um deitado para uma ponta. em silêncio. até que dizias qualquer coisa devagar. e eu nada dizia. depois dizia eu outra coisa qualquer. e é verdade que passámos muito tempo assim. os silêncios largos. soube sempre que te apaixonaste. sempre que te acontecia qualquer coisa. salvaste-me muitas vezes de morrer uma outra morte que não era minha. e eu salvei-te muitas vezes de falares apenas para dentro de ti mesmo. e de muitas mortes pequenas, como sempre. no dia em que me telefonaste a contar, começaste por falar de coisas tão banais que fiquei sem perceber. até que disseste o que querias dizer. eu fiquei, deitada para o outro lado do sofá, um bocado em silêncio e depois, como muitas vezes, choraminguei. estavas tão calmo quando disseste não temos filhos, nós, não é, elisa? e eu compreendi o que querias dizer, naturalmente. e esperei um bocado antes de te exigir pormenores.

a primeira coisa que fiz quando soube que ias deitar-te no braço de um sofá eterno foi procurar o teu número no meu telefone. e pus-me ali com o dedo sobre o telefone verde. acho que queria mandar-te à merda ou talvez apenas ficar ali em silêncio contigo. como no meio dos teus livros. como no fundo de um copo. qualquer coisa que pussesse uma ordem onde ela nunca existiu, embora tivesse estado sempre lá.

estou em wageningen, holanda e está um frio do caraças. o mesmo frio que ficou em mim depois daquele telefonema que fizeste em que nós não temos filhos, não é, elisa? o mesmo frio que ficou quando o meu dedo achou inútil carregar no pequeno telefone verde, no sábado, em lisboa, chovia e eu estava a apaixonar-me e não sabias ainda. o mesmo frio que ficou e ficará a juntar-se a outro grande frio de que ajudaste a salvar-me. escrevi-te um livro inteiro dentro do avião. mas decidi que não vou publicá-lo. fomos tudo o que duas pessoas podem ser uma com a outra, menos inimigos, e a única coisa que quero dizer ou escrever, para dentro de ti, é apenas isso. todas as coisas ficaram sem ordem dentro de mim. e ainda esperei que por cima das nuvens viesses salvar-me.

Comments

  1. Não acreditamos… mas é tão mais fácil acreditar.
    Um beijo.

  2. perfeito 🙂

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