Post scriptum

No passeio de lá, apareceu de repente o meu pai. A minha cabeça sabia, e soube-o durante todo o tempo que a cena durou, que não podia ser o meu pai. As pessoas mortas não passam do lado de lá da rua, embora haja aquela história muito bela do Juan José Millás, de quando ele era pequeno e acreditava que quem morria ia viver para o bairro dos mortos, nos arredores da cidade. A minha cabeça sabia que não era possível, mas o meu coração acreditou, por instantes. E por isso bateu um pouco mais depressa. E as pernas, que sabem aquilo que a cabeça lhes diz, desta vez deixaram-se enganar pelo coração e tremeram. Em seguida, a cabeça recuperou o domínio sobre todos e lembrou que não, não pode ser, aquele homem, reparem bem, não pode ser ele e não é ele. É certo que o recorda um pouco, no cabelo, no casaco, no jeito de andar, mas nada mais. Aquele homem é um desconhecido. Não batemos, coração, mais depressa por um estranho. Nem trememos, pernas, por desconhecidos do outro lado da rua, que não nos perseguem nem ameaçam, nem sequer reparam em nós. Vamos lá recuperar o bom senso.

E assim foi, continuei caminho, com as pernas a tremer para nada e aquela sensação de haver sido um pouco pateta.

Não foi a primeira vez que isto me aconteceu. O coração e, logo a seguir, as pernas, às vezes também as mãos, foram sempre enganados. Pessoas sensatas explicaram-me que é normal, coisa que eu nunca duvidei ser. Os olhos procuram similitudes com padrões conhecidos. Os olhos procuram, respondo, o que o coração deseja ver. E o coração, que é sempre o pobre tolo, tem de aprender, uma e outra vez, a perder.

O problema é que os mortos abandonam-nos. Deixam-nos a falar sozinhos. E a memória, a nossa, acusa o peso da responsabilidade. “Estou a esquecer-me do timbre da sua voz, estou a esquecer-me de detalhes do rosto”, vai avisando. É uma angústia.

Não há sítio onde se possa encontrar um morto. Nem numa lápide, nem no jardim onde repousam cinzas, nem na cadeira que foi a sua favorita, em lado nenhum. Queremos contar-lhe o que nos aconteceu, queremos fazer-lhe uma pergunta, queremos mostrar-lhe alguma coisa, queremos a sua opinião e não há sítio algum onde possamos encontrá-lo.  As pessoas a quem o dizemos acham isto redundante. Claro, estão mortos. Mas é para essa ausência que nunca estaremos preparados. Como me parece risível esse pensamento que tantas vezes tive “Aos poucos, vou-me preparando”.

O problema, como li num romance do Julian Barnes e nesse momento não o entendi, é que o facto de alguém estar morto pode querer dizer que não está vivo, mas não quer dizer que não exista. E só o percebe quem sofre a sua ausência.

E a memória, a memória não chega, a memória é breve e explica-nos, a cada passo, que lhe é impossível permanecer, que irá falhar, que houve coisas que já se perderam. Uma ampulheta por onde escorre um fio vagaroso.

Detenho-me frente às fotos nas paredes, nas prateleiras das estantes, e pergunto-me: Onde está este corpo? Que aconteceu a este rosto? À voz, à gargalhada?

Nunca entenderei este mistério, apenas aprenderei a viver com ele.

Foto: CR. Praia da Boa Nova, Leça da Palmeira.

Comments

  1. jpfigueiredo says:

    Belo texto. Será que só quem teve semelhantes perdas recentes treme ao lê-lo?

    • Não têm porque ser recentes, o tempo da memória obedece a outras regras. Mas é preciso ter perdido para entender essa dor, sim.

  2. Fernando Lopes says:

    Alguém disse que só morremos verdadeiramente quando o nosso nome é pronunciado pela última vez. De um modo particular estão bem vivos os nossos mortos.

  3. Konigvs says:

    Isso não acontece só com as separações por via da morte, acontece também nos casos das separações amorosas. E apesar de racionalmente ser mesmo impossível ver tal pessoa, por ela estar bem longe num outro país, mas basta um vislumbre dos mesmo cabelos, das mesmas formas do corpo, dos mesmos óculos de sol que lhe tapavam metade da cara, que ao longe, o nosso cérebro logo nos engana e faz-nos acreditar que sim, que é mesmo aquela pessoa. E também aí se fica muito nervoso e o coração dispara. Depois aos poucos aproximamo-nos e comprovamos que não é quem queríamos que fosse.

    Quanto ao seu pai… É curioso como até nisso nós não somos todos iguais, e não há nenhum ministério da igualdade ou lei que nos faça iguais, porque seremos sempre todos diferentes, todos mais ou menos especiais. Isso há-de ter uma qualquer explicação, talvez um dia a conheçamos. E eu continuo sem saber por que será que há pessoas que têm a capacidade, o dom, ou a maldição, e eu acredito mesmo que se trata de uma maldição, pois só pode ser uma maldição muito grande, ver quem já morreu. Tal como só pode ser uma maldição ter informação privilegiada sobre tudo e sobre todas as pessoas, mesmo de pessoas de quem nunca se viu, só dos outros nos falarem delas em conversa. Tão grande maldição que é preciso ter acompanhamento para não se dar em maluco…

    Talvez um dia a Carla volte a ver o seu pai. Talvez eu mesmo volte a estar com o meu pai que não vejo há mais de vinte anos. Mas isso ainda podia esperar mais uns dias. Por agora contentava-me só em ter o abraço da mulher que amo, que perdi, e que vejo por aí de vez em quando. Nunca é ela, porque não poderia ser, mas como eu tanto queria que fosse…

  4. repare bem, às vezes uma flor que aparece pousada sem se saber como, um perfume que se sente, não se sabe de onde, a identificação de uma frase pela boca de outra pessoa. nem todas as formas de ver e de se manifestar atravessam o olhar 🙂

  5. Fátima Ferreira says:

    Às vezes, sentimos tanto a presença de quem partiu antes de nós que acabamos por vê-la à frente dos nossos olhos com todo o coração. São momentos especiais em que a saudade é a força maior. A memória não é breve, a memória é eterna seja ela mais ou menos palpável. Aproveita estes momentos de proximidade e carinho!

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