Pagamento da factura: a influência do AO90 na pronunciação

Neste vídeo, encontrado na página dos Tradutores contra o acordo ortográfico, podemos ouvir uma jornalista a emendar a pronunciação da palavra “factura”: quando se preparava para fechar o A pretónico, foi socorrida pela memória e ainda conseguiu reabrir a vogal, como se o C diacrítico e etimológico ainda lá estivesse. No fundo, uma pessoa, agora, para articular correctamente algumas vogais tem de imaginar consoantes.

O fechamento de vogais é uma das consequências do AO90. Nos verdes campos da ilusão acordista, alguns garantem que a realidade não existe; outros desejam que a memória fonética permita manter a pronunciação.

Já sabíamos que o AO90 não originou uniformização ortográfica, mantendo umas diferenças e criando outras. Como se isso não bastasse, ainda poderá contribuir para o aumento de diferenças de pronunciação: efectivamente, onde brasileiros e portugueses abriam as mesmas vogais, o AO90 poderá conseguir, ainda, mais algumas separações. Continuamos a pagar a factura.

Comments

  1. Pedro M. Pinto says:

    Caro Prof. Fernando Nabais,
    Onde está escrito “pretónico”, deve estar “pré-tónico”. O prefixo “pré-” é sempre seguido de hífen por ter acento gráfico (ex.: pré-universitário). Caso contrário, pronuncia-se ‘e’ fechado em “pre”, como em “prefixo”, “preconceito” (≠ de “pré-conceito”), etc..

    • É mesmo “pretónico” que se escreve: http://www.priberam.pt/dlpo/pret%C3%B3nico.

    • António Fernando Nabais says:

      Caro Pedro Pinto
      A sua argumentação faz bastante sentido e, durante muito tempo, pensei que se escrevia com hífen, mas a verdade é que a grafia desta palavra é “pretónico”, com ou sem AO90, como poderá verificar em qualquer dicionário ou prontuário.

  2. Curioso, nunca precisámos de consoante muda para pronunciar o “e” aberto de “feto”, “abeto”, “Anacleto”, etc., porque será? A abertura e o fechamento das vogais nunca dependeu de critérios ortográficos, como qualquer especialista de linguística diacrónica sabe. O uso ditará a pronúncia, como comprovam as grafias “cerveja” e “igreja”, exemplos de uma pronúncia-padrão há muito desaparecida (apenas preservada em variedades diatópicas do sul alentejano e algarvio), grafia que não nos impediu de evoluir para uma pronúncia em ditongo “ei” e, posteriormente, para um monotongo com vogal átona típico da região de Lisboa “a”.

      • Caro RH: considero-me suficientemente informada sobre estas matérias, considerando que tenho um grau de Mestre em Linguística Portuguesa Descritiva e um Doutoramento em Linguística Contrastiva. Como deve imaginar, Gonçalves Viana e Rebelo Gonçalves não são para mim ilustres desconhecidos. Tenho pena que tanta ilustração não lhe tenha ensinado maior delicadeza linguística: o imperativo configura um ato de ordem que não é adequado usar, quando se destina a alguém que não conhecemos, ainda mais quando o utilizador se esconde sob uma designação tão opaca como RH. Aí está uma competência linguística que não é possível aprender em vocabulários e prontuários ortográficos, por mais rigorosos que sejam.

        • Argumento da autoridade? É poucochinho.

          • Não aduzi o argumento da autoridade, mas se o tivesse feito estaria apenas a imitá-lo (não vai dizer agora que não invocou a autoridade de Gonçalves Viana e Rebelo Gonçalves!). Só lhe quis fazer ver que não é razoável mandar alguém ler/ilustrar-se sem se saber com quem se fala. Mas esteja sossegado, porque não tenciono continuar a incomodar os frequentadores deste sítio, sobretudo quando se trata de pessoas que se escondem sob pseudónimo virtual. Há discussões que já há muito deixei de alimentar e este é mais um exemplo de como não vale a pena. Pense bem, da próxima vez que mandar alguém LER!

          • A diferença é que os referidos autores explicam, a senhora nada explica. Passe bem.

        • Maria José says:

          Porque devemos dar importância a uma Sra. mestre/doutora que escreve “ato”? Se calhar ato os sapatos.

  3. Complemento o comentário anterior com uma última observação: não aprendi a pronúncia da minha língua através de critérios ortográficos, e não tenho dificuldade em decidir sobre a abertura ou fechamento de vogais. Causa-me, por isso, enorme estranheza o facto de se considerar que a ortografia tem o poder de nos “condenar” / “induzir” a uma pronúncia incorreta. Compreendo a aflição de quem aprendeu a ler mediante critérios ortográficos e a dificuldade de rever hábitos antigos, mas não partilho essa visão catastrofista de um futuro de pronúncias corrompidas pela falta de consoantes mudas.

    • António Fernando Nabais says:

      Reproduzo aqui a resposta que dei noutro espaço virtual aos dois comentários de Rute Soares.

      Cara Rute Soares, em primeiro lugar, agradeço-lhe os comentários. O facto de não precisarmos de consoantes mudas para sabermos pronunciar muitas vogais não é argumento para garantir que não há consoantes mudas com valor diacrítico. Tendo em conta que o AO90 é um trabalho académico (ou pretende sê-lo), e já que foi elaborada uma Nota Explicativa, seria importante que se explicasse em que medida as razões apontadas na Convenção de 1945 para manter essas consoantes estão erradas. Em qualquer trabalho académico, como sabe melhor do que eu, podemos pôr em causa afirmações de autoridades científicas (como é o caso de Rebelo Gonçalves), mas isso obriga a argumentação consistente e os autores do AO90 não o fazem (a propósito, Antônio Houaiss reconhecia a existência de consoantes mudas com valor diacrítico, o que torna estranho defender a sua supressão). Depois, parece-me que palavras como “nunca” ou “sempre” tornam os enunciados demasiado simplistas. A pronunciação das palavras não se aprende apenas através da ortografia, como é evidente, mas também através da ortografia, já que as relações entre fala e escrita são razoavelmente complexas, ainda mais numa sociedade em que a escrita tem uma importância tão grande (calculo, a propósito, que conheça o artigo do Professor António Emiliano “O primado da escrita”). Não aprendemos nós a língua (ou mais especificamente, a pronunciação) também através de “critérios ortográficos”? Sempre que, ao longo da vida, lemos uma palavra nova, tivemos de pedir a alguém que a pronunciasse? Não nos ensinaram, por exemplo, que o acento agudo indica a sílaba tónica e a abertura de algumas vogais? Como explica o erro cometido pela jornalista da TVI? E como explica que um aluno meu tenho lido “atores” com A fechado e uma outra aluna tenha fechado o E pretónico de “suscetível”? Como explica que uma aluna de um colega meu tenha fechado o A pretónico de “ação”? (A propósito, calculo que tenha lido “Os lemas em ‘-acção’ e a base IV do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990” (Diacrítica, 24/1), de Francisco Miguel Valada.) Não se trata, portanto, de ter aprendido a ler segundo critérios ortográficos ou de ter dificuldade em perder hábitos antigos. Trata-se, apenas, de ter muita dificuldade em aceitar a imposição de um instrumento tão carregado de deficiências e tão falho de honestidade científica, a mesma honestidade que deveria obrigar os autores a explicar o que estava errado na anterior convenção (Galileu não se limitou a dizer que é a Terra que anda à volta do Sol: explicou-o). Note-se, ainda, que o fechamento de vogais é apenas uma das consequências negativas deste acordo.

  4. Nina Alves says:

    Parabéns, Rute Soares! Sendo eu da área, também já me cansa ler tanto fundamentalismo baseado em coisa nenhuma. O que me desconcerta ainda mais, passe o eufemismo, é ler o argumentário que é contrariado por exemplos práticos, tais como os que apresentou sobre a abertura do “e” sem a muleta da consoante muda.
    Veja-se o aqui d’el rei ( ou será rey?) à volta da acentuação de algumas palavras, as homógrafas. “Eu molho pão no molho do bife.” Não havendo acentos, alguém hesita na pronúncia do verbo e do nome?

    • A ignorância é, realmente, muito atrevida. As respostas às suas perguntas e dúvidas estão por todo o lado, basta uma simples pesquisa no Google. Se quiser leia as ligações fornecidas acima. Os exemplos que indica são confrangedoramente ingénuos e de alguém que não tem a mínima noção do que é a fonologia portuguesa.

    • António Fernando Nabais says:

      Cara Nina Alves

      Muitos críticos do AO90 são também “da área”. Sem possuir os mesmos galões académicos, sou professor de Português do Ensino Básico e Secundário há 27 anos, o que, não fazendo de mim um especialista, não me coloca propriamente na posição de leigo.
      Ninguém a negou a existência de vogais pretónicas cuja abertura não precisa de sinais diacríticos. O que está em causa é demonstrar, contrariando Rebelo Gonçalves, as razões para prescindir de consoantes mudas que, entre outras razões, tinham a função de “abrir” a vogal pretónica. Isso não se faz mostrando exemplos em que isso não acontece; faz-se provando que, nos casos apontados, o acordo de 1945 está errado. Não se provou.
      No que respeita às homógrafas, a Nina defende, implicitamente, que não há mal em aumentá-las porque já existiam algumas, o que, mais uma vez, não me parece convincente (mantra número dois: https://osdiasdopisco.wordpress.com/2014/02/26/os-10-mantras-mais-murmurados-em-defesa-do-ao90/). O seu exemplo não está mal, mas sempre lhe digo que há muita gente que erra ao pronunciar o plural de “molhos” (de comida), fechando o O tónico. Porque será? E não, não resulta do AO90.

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