Santana Lopes ou ortografia sem dogmas

ng3661661Ontem, Santana Lopes, cultivando cabotinamente uma pose de senador, torceu um nariz aborrecido às pessoas que levam a ortografia a sério. Enfadado, declarou que, para ele, a ortografia não é um dogma e que, portanto, alterna, ao sabor dos ventos, entre a ortografia de 1945 e a de 1990, ainda que se orgulhe de ter assinado o AO90.

Ficamos a saber mais: o especialista em língua portuguesa que lhe explicou a necessidade de se fazer um acordo chamava-se Cavaco Silva. Como se isso não bastasse, explicou que isto do AO90 é uma boa tentativa que, tal como a CPLP, falhou. Santana, sem se aperceber, clarifica: o AO90 falhou.

Entretanto, no país, há pessoas que não têm direito à mesma liberdade que o antigo primeiro-ministro: os alunos do Ensino Básico e Secundário serão prejudicados, pelo menos nos exames nacionais, se não utilizarem o acordo. Pelos vistos, o sol ortográfico, quando nasce, não é para todos.

Santana Lopes e outras vacuidades com poder nunca procurarão informar-se e, por isso, não fazem a mínima ideia dos estragos que o AO90 directa e indirectamente anda a provocar. A boa ortografia é, no mínimo, tendencialmente dogmática, no sentido de que impõe regras e não facultatividades. A escrita de uma palavra não pode depender da vontade ou da pronunciação de um indivíduo, sob risco de criar um caos ortográfico que só pode ser inimigo da expressão e da compreensão rigorosas. Uma ortografia “fonética” é, portanto, uma contradição nos termos e serviu para abrir a caixa de Pandora.

Santana afirma que o facto de não considerar a ortografia um dogma é o lado para que dorme melhor. Costuma dizer-se que uma consciência limpa ajuda a um sono tranquilo. Não ter consciência tem o mesmo efeito.

Comments

  1. Sempre poderá alegar “facultatividade” quando lhe apontarem um erro ortográfico, perdão, “outrográfico”

  2. Aos poucos, mais ou menos claramente, às vezes só por meias palavras, outras vezes por significativos silêncios, os políticos e outros antigos entusiastas do AO, vão admitindo que este AO FALHOU.
    O que ainda lhes falta é a coragem de o mostrarem mais claramente e, acima de tudo, de AGIREM para evitar que mais crianças e mais gerações continuem a ser prejudicadas por um “acordo” que não foi acordo e por uma reforma ortográfica mal elaborada, que não interessa a ninguém.

  3. Afonso Valverde says:

    Não tenho conhecimentos bastantes para discutir as virtualidades linguísticas do tal AO90.
    Quando nascemos herdamos também a língua dos nossos antepassados e vamos à escola melhorar sobretudo a sua escrita.
    Frequentemente, o que nos distingue é o bom uso da nossa língua falada e escrita. Todos temos a obrigação de a usar bem.
    O que me aborrece é ter-se iniciado uma “aventura” de mudança ortográfica da nossa língua sem acautelar que existência de um acordo com base na vontade dos filologistas e linguistas.
    Um acordo ortográfico iniciado por políticos era de esperar asneira da grossa.

  4. Helder P. says:

    Precisamente por admitir tantas facultatividades é que não considero este AO 1990, nem sequer um acordo, nem sequer ortográfico. A ortografia é o ramo da linguística que regula segundo normas rígidas a escrita de um idioma. Quando as normas deixam de ser rígidas, temos o caos e não a ortografia.

  5. Ana A. says:

    A minha filha que vai fazer exame a português este ano (12º), tem dificuldade em se decidir que cor levar vestida, nesse dia: se cor-de-rosa, se cor de laranja… e eu respondo: leva cor de burro quando foge, que não tem qualquer conotação partidária…

  6. José Lima says:

    Depois disto, fiquei cheio de vontade de convidar Machado de Assis para irmos ouvir um Concerto para Violino de Chopin.

  7. Marco Dinis says:

    Não compreendo a questão. É bom lembrar a força que tem a língua portuguesa no mundo. E este Acordo Ortográfico vinha criar ainda mais força nesta língua.
    Querem criticar por ser o Santana Lopes é isso? O que ele diz é o mais sensato e o que se passa no país, isto não é um caso. Cada um escreve de forma livre. Deixem-se de tretas e quezílias.

    • José Lima says:

      O Acordo não cria força nenhuma na língua e, ao invés, abastarda-a para além do que é tolerável, ademais de não unificar coisa alguma com todas as excepções que continua a permitir. E, não, isto não é uma treta nem uma quezília, mas um caso fundamental de defesa da identidade cultural portuguesa, e se porventura o fosse, então, primeiro que tudo, porquê o impor coercivo do acordo ortográfico à revelia da vontade generalizada dos portugueses? Melhor, muitíssimo melhor, teria sido deixar tudo como estava. Enfim, o que Santana Lopes afirma nada tem de sensato, e manifesta antes a insuportável arrogância de uma pseudo-élite que vive no seu circunscrito mundo de torres de marfim, quase todas lisboetas, e que se supõe – sem que nada ou ninguém a tenha legitimado para isso – iluminada e superior à generalidade dos portugueses.

    • António Fernando Nabais says:

      Marco Dinis, o que é isso de uma língua ter mais ou menos força? Mas há algum combate entre as línguas? E em que é que um acordo mal concebido dá mais força a uma língua?
      O que é escrever de forma livre? Considera que não deve haver erros ortográficos? Se sim, tanto faz haver acordo como não haver, penso eu.

  8. Ana A. says:

    “Cada um escreve de forma livre.”
    Eu bem queria escreber de forma libre! Mas, libra, que eu sou do porto (ou do Porto?), volas! quero tanto ser libre e já nem comigo me entendo! É no que dá a liverdade, carago!

  9. 1- O especialista em Língua Portuguesa que mais me explicou essa conveniência foi o Prof. Doutor João Malaca Casteleiro. As opções do acordo são da responsabilidade da Academia das Ciências, não de Governos ou Presidentes;
    2- As grafias oficiais anteriores também decorreram de normativos e de acordos. Também foram abusos ou eram puros, na legitimidade e nas opções de grafia?
    3- Orgulho – me de ter assinado o Acordo em 1990. E muitos já lutaram posteriormente por ele. Agora, dogmas, na Vida, só noutros assuntos;
    4- Sempre respeitei e respeito quem concorda e quem discorda do acordo. Oxalá todos fizessem o mesmo;
    5- 26 anos depois da assinatura a avaliação do tempo que já passou pode ser feita e lições serem tiradas. Em público, os mais Altos Representantes do Estado devem manter, por enquanto, prudente reserva sobre o tema.
    6- Porque só sabem escrever ofendendo ou depreciando? O País já pagou um preço alto de mais por esses preconceitos.

    • António Fernando Nabais says:

      1 – de acordo com as declarações feitas no programa, não há uma única referência ao dr. Malaca Casteleiro. Pelo que se percebe, terá sido o prof. Cavaco Silva a explicar que, sem o AO, o português de Portugal seria, no séc. XXI, uma espécie de latim, argumento, de qualquer modo, insustentável. A Academia das Ciências foi colocada à margem do processo;
      2 – no meu texto, não há nenhuma crítica ao facto de as grafias anteriores decorrerem de normativos;
      3 – ao dizer, em público, que lhe é indiferente escrever nesta ou naquela ortografia, está a desrespeitar todos aqueles que são obrigados a usar aquela que, também graças à sua assinatura, acabou por ser imposta aos alunos das escolas portuguesas;
      4 – tenho muito respeito por quem fala acerca daquilo que sabe e, ao fim de vários anos, estou demasiado farto de ver/ouvir comentadores a dissertar com demasiada descontracção sobre assuntos que não dominam;
      5 – houve pareceres muito críticos ao AO90 logo no início do processo. A aplicação do mesmo AO90 está a ser desastrosa como poderá descobrir se quiser verdadeiramente informar-se. Os mais Altos Representantes do Estado devem preocupar-se com o bem público, o que pode implicar reservas prudentes ou absoluta frontalidade;
      6 – neste ponto, critica, segundo julgo, os meus excessos de linguagem, para, logo a seguir, fazer referência a preconceitos. Não percebo a ligação. Entretanto, o País está a pagar caro o facto de muitas questões culturais e educativas serem decididas sem verdadeiro debate, ficando, frequentemente, entregues a grupos feudais que, mais uma vez, não querem saber do bem público.
      Agradeço o seu comentário.

  10. anacrish says:

    “1- O especialista em Língua Portuguesa que mais me explicou essa conveniência foi o Prof. Doutor João Malaca Casteleiro.”
    Está tudo dito. Principalmente com todos os pareceres contra que existiram, ouviu o autor do próprio e contentou-se? A sério? E continua orgulhoso do caos em que lançou a língua e o ensino da língua? Ou será que o Malaca lhe tem dito que está tudo a correr bem? Se calhar é isso…

    No resto, subscrevo tudo o que o António Fernando Nabais escreve.

  11. José Lima says:

    Pela minha parte, lamento que PSL tente atabalhoadamente desresponsabilizar-se com as explicações dadas pelo Professor Malaca Casteleiro, como se este último porventura alguma vez houvesse desempenhado funções de soberania, tivesse sido ele que politicamente negociou, aprovou e impôs a aplicação prática do acordo ortográfico, de resto, com os resultados catastróficos conhecidos de todos os que utilizam diariamente a língua portuguesa como ferramenta de trabalho e não apenas no campo do ensino. Outrossim, deploro que ao tempo PSL não houvesse apelado à prudente reserva que agora tão convenientemente invoca, não tivesse ouvido, para além do Professor Malaca Casteleiro, muitos outros especialistas que consabidamente eram e são críticos do acordo ortográfico – é que, também por atitudes irresponsáveis como esta, o país já pagou um preço muito alto…

  12. Tempero Correia says:

    Santana Lopes é capaz de ter razão. Regras? para que servem as regras? A gente escreve como quer, anda com quem quer, bebe do que quer, gasta o que quer, deita-se às horas que quer… A propósito: quem é o tal Santana Lopes?

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  1. […] Os leitores do Aventar conhecerão certamente a seguinte afirmação de Santana Lopes: […]

  2. […] de ter assinado, em 1990, o chamado acordo ortográfico (AO90), mesmo se considera a ortografia um assunto maçador. Há cinco anos, julgando mostrar o seu conhecimento sobre o assunto, desvalorizava as críticas ao […]

  3. […] fala-se muito (“Portugal fez a sua parte“). Aliás, fala-se imenso (“Orgulho-me de ter assinado o Acordo em 1990“). Declara-se abundantemente (“O autor escreve segundo as normas do novo Acordo […]

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