Carta do Canadá – Os brasis

Eu sei de vários Brasis. Tenho-os encontrado ao correr dos anos. O primeiro Brasil que eu encontrei foi o da música, dos sambinhas meio ingénuos, meio marotos. Era o tempo de Carmen Miranda. Ficou-me esse gosto pela batida brasileira (tão próxima da batida angolana), aquele jeito solto de rimar o pão nosso de cada dia. Depois veio o tempo das greves académicas em Portugal, da ditadura no Brasil, e a descoberta de Bethania,  Caetano Veloso, Gilberto Gil,  Chico Buarque, Tom Jobim  – a fazerem o contraponto de resistência às toadas baianas de Dorival Caymi e às figuras esculpidas em prosa por Jorge Amado. E a descoberta, deslumbrada, da poesia brasileira, que leio tanta vez.


Em 1958 acompanhei de perto o refúgio de Humberto Delgado na embaixada do Brasil, e a rocambolesca fuga de Henrique Galvão do Hospital de Santa Maria para a embaixada da Argentina. Fiquei sempre grata ao embaixador Álvaro Lins pela serena coragem que demonstrou vivendo a sua embaixada paredes meias com a sede da Pide. Nesse tempo eu falava muito com o escritor Ruben Andresen Leitão, ligado ao Brasil.

Deste Brasil de cantores, músicos, poetas e resistentes à ditadura, gostei e gosto.

Nos anos 60, o Brasil descobriu que tinha um acordo com o Instituto de Alta Cultura e enviou-nos, por anos a fio, companhias de teatro, bailarinos da ópera e da Gulbenkian, actores e políticos que tomavam café na Brasileira, iam aos fados no Embuçado e tinham jantares no Palácio de Pintéus, do João Ferreira Rosa.  Portugal nunca descobriu a contrapartida desse acordo e o Brasil não mostrou interesse pelos nossos artistas e escritores.  Não gostei.

Na início da década de 70, fui ao Brasil. Achei que tinha lugares muito bonitos, mas estava lá a ditadura militar a estragar tudo. Uma noite, amigos levaram-me a um show num cabaré na zona norte do Rio de Janeiro. Quando saímos do cabaré, passava das 3 da manhã, fiquei transida e confusa ao deparar com as bordas dos passeios cheias de meninos, a dormitar encostados uns aos outros como passarinhos, tendo à sua frente a fatal caixinha de engraxador.  Perguntei o que era aquilo. Explicaram-me, em voz abafada, que eram meninos sem família por a terem perdido nas trágicas retiradas das cheias do nordeste. Estavam ali, disseram-me, à espera que as prostitutas acabassem o trabalho da noite para poderem ir para os quartos delas dormir. Nos dias anteriores eu tinha podido observar, na zona sul do Rio, as sumptuosas mansões, com piscinas vastas à roda das quais criados negros, fardados, serviam refrescos em bandejas de prata. Essas imagens assaltaram-me de repente e dei por mim a vociferar uma brutalidade: “que país é este em que as putas têm coração e as senhoras não têm”?  Caiu-me em cima um silêncio pesado.  E a partir daí, passei a dar uma atenção toda especial às calamitosas diferenças sociais do Brasil.  Diferenças que, sei-o hoje, se estendem à emigração: os licenciados brasileiros  bem instalados em lugares de privilégio no Canadá, não querem saber da sua comunidade que trabalha duramente para poder mandar dinheiro à família e para ter um dia uma reforma na velhice.

Este é o odioso Brasil que apareceu de corpo inteiro, transmitido pelas televisões e redes sociais de todo o mundo, dentro dum parlamento de ralé, onde desfilaram, desbocados e ignorantes, labregos e sem maneiras, uns coronéis do mato e seus jagunços, travestidos de deputados, para votarem o impedimento da Presidente da República. Contavam-se às mãos cheias os corruptos, os ladrões, os escroques, e eram eles que assumiam a tirada moralista.  O Brasil está, agora, a um passo do precipício. Os brancos endinheirados do Brasil nunca perdoarão a Dilma Rousseff ter-se empenhado em apurar o caso Petrobras até às últimas consequências. Nem perdoarão a Lula da Silva, ter tirado das garras da fome 20 milhões de brasileiros. Nem a alta finança internacional, os célebres mercados, perdoarão que Lula tenha personificado uma alternativa à esquerda radical ao produzir à direita e distribuir à esquerda, assim podendo contagiar de bom senso a América do Sul.

A partir de agora, com jornais internacionais a garantirem que o actual presidente foi informador da CIA, tudo é possível.

Comments

  1. anónima says:

    Que análise tão simplista. E o Mensalão, por exemplo? E o PT, tem as mãos limpas no caso Petrobrás? E as “pedaladas fiscais” que todos os governos Brasileiros fazem, o PT foi diferente?
    Durante anos o PT não teve qualquer prurido em se aliar a “desbocados e ignorantes, labregos e sem maneiras, uns coronéis do mato e seus jagunços, travestidos de deputados”.
    Não fosse este processo de impeachment e nenhum destes deputados causaria qualquer repulsa ao PT.
    Durante anos o PT não me pareceu muito incomodado com o sistema judicial ou com o sistema político que agora “permitiu o golpe”. Nada.
    E o “movimento dos sem terra”? Como foi tratado pelo governo do PT?
    No Brasil não há anjos de um lado e demónio do outro, como a sua análise simplista parece fazer crer. O PT também tem a sua dose de elites corruptas.
    Talvez se tivesse havido mais sentido crítico face aos governos do PT, nomeadamente à esquerda, as coisas não tivessem chegado a este ponto. É nisto que dá o deslumbramento e a cegueira ideológica. Tudo se perdoa, porque o PT lançou dois programas sociais.

    • Apesar do que diz em relação ao MST, toda a gente consegue ver que tem estado na linha da frente das manifestações contra o impeachment, inclusive queimando pneus e encerrando estradas, e apoiou as eleições de todos os governos PT até à data, e continuará a fazê-lo. Sabia que o MST é chamado de “grupo armado da quadrilha petista” pelas pessoas que chegaram ao poder agora? O MST, que foi aliás um dos PRINCIPAIS alvos dos manifestantes pró-impeachment, que usavam um boneco com a t-shirt do movimento (MST) e o enforcavam.

      Não é por acaso que a bancada que ascendeu ao poder agora, chamada de BBB (Boi, Bala e Bíblia) já prometeu fechar fechar a ‘”torneira” ao Movimento Sem-Terra — decisão aplaudida por toda a Direita, a qual na sua larga maioria não reconhece sequer o seu direito de existência. Eles representam os latifundiários que têm exterminado (não é força de expressão, refiro-me a assassinatos mesmo — o boneco do MST enforcado nas manifestações não era força de expressão também) os sem-terra em zonas do Interior. “O controle das invasões de terras é muito importante” — é esta a posição da frente agropecuária do novo governo, relativamente aos sem-terra. O próprio Ministro do Desenvolvimento Agrário do novo governo, mais conhecido como “rei da soja” (e também como rei da desflorestação da Amazónia) é um velho “amigo” dos sem-terra e usou com orgulho (!) a violência da Polícia Militar no Mato Grosso para os expulsar vezes sem conta. Portanto quando questiona o tratamento dos sem-terra pelo governo, eu não sei que lhe diga tendo em conta a posição dos BBB’s.

      Relativamente ao sistema político brasileiro, só dizer o seguinte: a grande maioria dos partidos (atualmente há 28 partidos com representação no Congresso), não possuem qualquer coerência política, quanto mais disciplina partidária ou ideológica. O seu propósito é simplesmente assegurar favores do Executivo diretamente para os seus bolsos e, claro, dar algum retorno para assegurar a reeleição nos seus Estados, oferecendo ao governo votos favoráveis na Câmara. É isto! Este é o sistema político brasileiro! Claro que o Mensalão no primeiro mandato de Lula foi um escândalo, não digo que não, embora Lula fosse depois reeleito com mais de 60% dos votos. Mas então o Mensalão tucano, ocorrido há 18 anos? Porque é que o primeiro político condenado pelo chamado Mensalão do PSDB foi só em 2015 (17 anos depois dos factos ocorridos!) e é apontado por muitos como exemplo de morosidade da Justiça para punir corruptos do PSDB? É necessário entender que o desfazamento no tratamento da imprensa e da justiça em casos do PT relativamente aos outros partidos é de tal modo gritante (o vídeo Delação, da Porta dos Fundos, é menos cómico e mais sério do que parece; e a actuação de algumas figuras da Justiça parece saída de uma sitcom), que leva a que se aceite com quase “naturalidade’ que uma mulher sem cadastro nem acusação seja destituída por um governo com 7 ministros réus da Lava-Jato e um Presidente ficha-suja, considerado inelegível pela Procuradoria Eleitoral.

      Achei a sua análise um bocado simplista também.

      • anónima says:

        Tem razão em tudo o que diz. Só é pena que os últimos 14 anos não tenham sido suficientes para melhorar o sistema político, o sistema judicial, … Infelizmente quem governou o Brasil nos últimos 14 anos (14 anos!) preferiu tratar do curto prazo e não aproveitou para melhorar os diversos “sistemas”, garantindo sustentabilidade futura aos programas de curto prazo. Agora tudo pode ser facilmente revertido, porque nada de estrutural mudou. Passou a oportunidade, e agora é tarde. Fracasso total.

        • Concordo só em parte, porque é uma pescadinha de rabo na boca. Porque para se fazer a reforma do sistema político não basta ter vontade; precisa-se de ter apoio no Congresso e depois no Senado, e o PT tem só 13,5% de representação num e noutro.

          Lembro que o sistema de eleição para a Câmara dos Deputados é muito imperfeito e longe de ser proporcional. Aliás esse até tem sido um dos cavalos de batalha do PT há vários anos, que defende por exemplo que todo o financiamento dos políticos e dos partidos deve ser público — mas após o escândalo do Mensalão, em 2005, Lula teve de ceder ministérios e cargos ao PMDB em troca de apoio político, de outra forma forma seria impossível sequer negociar com o Congresso. Bem…
          Se há partido que não quer mexer no sistema actual, chama-se precisamente PMDB. Basta só ver as influências obscuras que têm sobre deputados, senadores e STF, para se perceber quem afinal detém as rédeas do poder. Não interessa se o presidente é PSDB ou PT, há de reparar que eles estão sempre no governo (pior que isso, vão no terceiro Presidente da República sem nunca sequer terem ganho uma eleição). Porque haviam de querer mudar as regras do jogo?

  2. Fernando Cerdo says:

    É óbvio que a cultura de corupção é transversal a toda a sociedade brasileira e que a esquerda não é imune a este flajelo moral. No entanto, é bem nítido que aquilo que se está a passar actualmente no Brasil é uma revolta da velha élite corrupta e hipócrita (ie. apregoam a “sociedade multiracial” num país com uma estrutura socio-económica herdeira da escravatura), com o total apoio logístico dos diversos serviços de espionagem norte-americanos, contra uma nova geração dirigente que tem transformado o Brasil num sentido globalmente positivo mas que também não é imune ao novo-riquismo corrupto que infecta quase sempre estes partidos quando finalmente se econtram com acesso a orçamentos de milhões. A CIA e os diversos outros serviços de “intelligence” dos U.S.A. entram no quadro não apenas por amor à élite retrógrada personificada pelas declarações boçais dos congressistas mencionados mas por um programa de sabotagem da aliança BRICS que pretende criar entidades financeiras internacionais alternativas ao Banco Mundial e ao FMI. Tal como países como a Grécia ou Portugal representam os elos fracos da UE o Brasil também é em certa medida o elo fraco dos BRICS considerando os laços antigos que unem as elites socio-económicas desse país com as elites dirigentes dos Estados Unidos e a enorme capacidade de sabotagem desses grupos.

    Já agora, quando penso em actividades da CIA no Brasil lembro-me sempre da jornalista “canadense” Isabel Vincent, que em determinada altura sentiu a necessidade de acrescentar um N e apagar um E do seu apelido lusitano.

  3. fleitao says:

    Senhora anónima: se a política fosse uma abstracção, um jogo mecânico, talvez eu lhe desse razão. Mas a política é feita para servir seres humanos e, portanto, tudo tem de ser levado em conta. Lula teve de fazer a lista das prioridades e, em primeiro lugar, no imediato, deu de comer a quem tinha fome. O que se compreende, porque ele sabe muito bem o que é a fome, a pobreza, a marginalização. Vem de lá. Assim sendo, 14 anos foram para esta tarefa. O resto viria depois mas, como sabemos, os mandatos politicos não são elásticos. De qualquer modo, é vergonhoso verificar-se que o Brasil, tão espantosamente rico em recursos naturais, estivesse ainda tão atrasado em infra-estruturas quando o PT subiu ao poder. Então não se contam as largas dezenas de anos que outros governantes anteriores gastaram para nada?
    Não sei, de facto, se Lula e Dilma roubaram. Aguardo que se apurem os factos. Por isso acho espantoso que todo este circo tenha sido montado com base em presunções. E montado por politicos que estão a contas com a justiça. Estas coisas entram pelos olhos de toda a gente mas, por cariacata circunstância, há cevados que só grunhem quando acicatados pelo despeito. Não é, felizmente, o seu caso, mas a internet é este baldio onde cabem todos. Ou melhor: na internet estamos juntos, mas não misturados. A minha filosofia de vida é simplista e por isso aprecio aqueles que dão de comer a quem tem fome, casa a quem não tem abrigo e por aí fora.

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