Cidadania ao vivo

marianna

“O que posso eu, sozinho, fazer contra o TTIP/CETA? pergunta-se meio mundo a si próprio”,  lia-se no cartaz de uma manifestante, aquando dos protestos contra os tratados que no mês passado reuniram 90.000 pessoas em Hannover. E de facto, o argumento de que não adianta empenhar-se porque não se consegue nada, está amplamente difundido, roubando força à cidadania. É lamentável que, enquanto cidadãos de países como a Turquia ou Angola arriscam a vida pelo direito ao protesto, quem dele dispõe, tão levianamente abdique de o exercer.

Esse não é porém o caso de Marianne Grimmenstein, uma professora de música de 69 anos residente em Lüdenscheid, uma pequena cidade alemã de 80.000 habitantes. Alarmada com a eminência da possível decisão de Bruxelas sobre a entrada em vigor do Acordo de Comércio Livre e Investimento (CETA) entre a UE e o Canadá, a corajosa e enérgica senhora não se poupa a esforços. Já em Agosto de 2014 Grimmenstein formulou e apresentou ao tribunal constitucional uma queixa contra o CETA. A queixa foi porém recusada por falta de suficiente fundamentação para uma possível violação dos seus direitos fundamentais. É que, após uma negociação absolutamente sigilosa, só no final de Setembro de 2014 o texto do CETA foi publicado. “A minha queixa foi apresentada cedo demais, ainda não havia o texto final para ratificação, ao qual o tribunal se pudesse referir.” Mas Grimmenstein não desistiu, pelo contrário, a recusa aumentou a sua determinação. Segundo explica, não quer deixar aos seus dois filhos, ao seu neto e aos jovens que foram seus alunos uma terra destruída.

Logo após a publicação do texto do CETA, Grimmenstein procurou conselho junto de vários juristas para definir o melhor procedimento, tendo-se concluído que a única maneira de impedir o acordo de forma vinculativa seria apresentar uma nova e bem fundamentada queixa constitucional.

Desta feita, Grimmenstein dirigiu-se ao renomado professor de direito Dr. Fisahn, da Universidade de Bielefeld, perguntando-lhe se estaria disposto a defender esta causa, inicialmente, a título pro bono. A resposta foi positiva.

Paralelamente, Grimmenstein lançou uma petição pública para substanciar a queixa, que conta já com 210.208 signatários – a maior queixa de cidadãos alguma vez já iniciada na Alemanha. E reuniu 14.000 euros em donativos, que permitem cobrir os custos relacionados com a queixa constitucional.

Os perigos do TTIP (o Acordo de Comércio Livre e Investimento com os EUA), confirmados há duas semanas através das revelações da Greenpeace e para os quais os cidadãos vinham alertando há já dois anos, são os mesmos que o CETA encerra. Porém a queixa constitucional contra o CETA, cuja ratificação está prevista ainda durante o ano corrente, constituirá um caso precedente, ou seja, será um litígio de referência para futuros processos desta natureza. Se Grimmenstein conseguir perante o tribunal constitucional deter a ratificação do CETA, haverá pois esperança de que o mesmo se venha a aplicar ao TTIP.

Além de ter sido professora de música durante 40 anos, Grimmenstein é também activista há mais de 20 e considera-se uma „Hobby- jurista“, especializada em direito constitucional e direito internacional. “Tenho a Constituição sempre à mão”, afirma. O CETA é o seu cavalo de batalha há já quatro anos. A sua principal acusação: o acordo vai uniformizar o direito de voto dos cidadãos, já que, seja qual for o partido votado, em caso de litígio com investidores estrangeiros os políticos nacionais não poderão ter qualquer influência.

E de facto, a dimensão e multiplicidade de implicações destes acordos são dramáticas. Desde a ameaça aos direitos dos trabalhadores e aos serviços públicos, passando pela introdução de alimentos transgénicos e com hormonas e, sobretudo, até à ameaça à própria democracia, através do mecanismo de protecção de investimento que permitirá a investidores processar Estados em “tribunais arbitrais especiais“ quando consideram que leis democraticamente aprovadas podem diminuir os seus lucros actuais ou futuros, é todo um sistema de valores que irá ser invertido, caso se concretizem. Sob o manto do incremento do comércio, estes acordos negociados em segredo pretendem, na verdade, minimizar todas as regulamentações que sejam consideradas barreiras ao comércio, incluindo as que visam a protecção do ambiente e os direitos das pessoas – como seja, por exemplo, um aumento do ordenado mínimo ou legislação que proteja o solo da poluição.

Grimmenstein está confiante de que, desta vez, a queixa constitucional vai ter sucesso. Caso contrário, está decidida a levá-la ao Tribunal Europeu. E como o número dos seus apoiantes não pára de crescer, esta professora considera que é um disparate dizer-se que as pessoas não se interessam pela política; o que é necessário, é activar os cidadãos. “Se não se pergunta ao povo o que quer, ele não pode ter voz activa.”

Sobre o CETA, tal como sobre o TTIP, deveria ser obrigatório informar os cidadãos e dar-lhes oportunidade de se pronunciarem sobre tão radicais consequências. Em vez disso, a Comissão Europeia negociou os acordos e quer ratificá-los “provisoriamente” em Bruxelas, às escondidas dos cidadãos.

Se não formos nós a protestar, é isto que nos espera. Depois é tarde demais. Não está sozinho, comece já: informe os amigos e assine a petição “Pelo debate e decisão sobre a ratificação do CETA na Assembleia da República”

Comments

  1. A via legal é uma frente de luta que não pode ser, de modo nenhum, negligenciada. Mas é preciso ter consciência de que o combate ou se travará nas ruas ou estará perdido. O sistema judicial, de um país ou da UE, faz parte do problema. E o problema é o capitalismo e as suas estruturas de dominação.

  2. O que cada um deve pensar é se sabe alguma coisa do que è o TTIP e CETA. Noto muita argumentação que parece preocupante : está a ser negociado em segredo, vai sr lesivo disto e daquilo, obriga-nos a seguir as regra dos EUA…
    Porquê ? porque alguns dos que argumentam conhecem mal ,com muitas deficiencias, o que consta no tratado e aqueles que são aliciados a revoltar/lutar contra os acordos, nem uma das alíneas conhecem. Para quando mais seriedade, profundidade e rigor nas “miltancias” que se assemelham muito a banha da cobra?

    • Ana Moreno says:

      “O que cada um deve pensar é se sabe alguma coisa do que é o TTIP e CETA”.
      Exactamente, esse desconhecimento por parte da população é estratégia para impor, o sigilo é a divisa. Por isso, até mesmo os deputados só podem ter acesso ao texto do TTIP (tendo esse limitado acesso em si já sido uma conquista da pressão exercida) em salas com vigilância, sem permissão para registarem partes do texto e sujeitos a proibição de falarem sobre o que leram seja com quem for, seja onde for. Felizmente a Greenpeace revelou grande parte do texto do TTIP e lá está, confirmou tudo aquilo que se receava.
      Mas não se iluda, nós conhecemos bem o texto do CETA – o tal que querem impor de forma não democrática e sem terem sequer ainda traduzido o texto para as línguas dos estados-membros – e está lá o mais grave, aliás, a razão de ser destes acordos: ISDS/ICS e cooperação regulatória.

      • Grata, Ana Moreno. Já agora, se se quiser dar ao trabalho de mergulhar do texto propositadamente hermético do CETA, deixo, aguardando que nos indique o que tem de positivo para o comum dos cidadãos, zelador dos interesses e do bem-estar das pessoas e do planeta e não do lucro e dos que dele se tornaram aditos. Estamos a necessitar de alguém que o consiga! Carecemos de contraditório que tenha a coragem de dar cara com verdades, sem imposturas.

        http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2014/september/tradoc_152806.pdf

Trackbacks

  1. […] de Karlsruhe uma queixa de inconstitucionalidade do CETA. A queixa é apresentada por uma professora de música de 70 anos de idade e subscrita, através de procuração (ver pacotes na foto), por mais 68.058 cidadãos […]

Discover more from Aventar

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading