Celofane

Karp Lykov e a sua filha Agafia, vestidos com as roupas oferecidas pelos membros da expedição de geólogos.

Karp Lykov e a sua filha Agafia, vestidos com as roupas oferecidas pelos membros da expedição.

 

A família Lykov, descoberta por uma expedição de geológos, em 1978, vivia na taiga siberiana há quatro décadas, sem nada saber do mundo, sem avistar qualquer outro ser humano que não um dos seis membros da família, sem paredes de tijolo, sem telhado que repelisse a chuva, sem electricidade, sem canalizações, sem sapatos dignos desse nome, sem cobertores, sem panelas, sem médicos, sem escola, sem notícias do mundo, sempre em risco de morrer de fome ou de qualquer doença que a medicina há muito houvesse domesticado. Viviam numa espécie de bolha, suspensa do tempo, isolada no espaço, uma vida de agruras ancestrais.

Os filhos mais novos já tinham nascido na taiga. Os dois mais velhos haviam fugido para ali, ainda muito pequenos, em 1936, com os pais. Membros de uma seita da igreja ortodoxa russa, sentiram-se ameaçados pelos bolcheviques.

Da história dos Lykov, resgato dois detalhes preciosos: de todas as modernidades que os cientistas lhes apresentaram, a que mais fascinou o velho patriarca Karp Lykov, que se lembrava ainda do mundo do qual fugira, foi a película de celofane. Vidro que se enruga! Nem os satélites, que ele havia já descoberto nos céus antes de conhecer a sua função, o fascinaram tanto.

O outro detalhe é ainda mais precioso. Sem amigos, sem livros, sem música, sem cinema, sem rádio, jornais, televisão, o entretenimento dos Lykov era contar uns aos outros os sonhos que haviam tido. Não inventavam histórias, como Xerazade, antes reconstruíam o que brotava do mais profundo da consciência.

Pouco depois de terem sido descobertos, os Lykov morreram. De velhice, de doença provocada pela má nutrição ou pelos recém-chegados visitantes, morreram todos, excepto Agafia, a filha mais nova. Os cientistas recordam-na, imóvel junto à margem do rio, na despedida, repetindo “Ide, ide”.  Tem agora 72 anos e ainda vive na taiga. Teve, durante algum tempo, a companhia de um cientista renegado, uma figura estranha de perna de pau, que ergueu uma cabana próxima, mas que ela nunca convidou a partilhar o seu tecto. Também ele morreu.

Os seres humanos mais próximos de Agafia estão a mais de 200 quilómetros. O mesmo céu que nos cobre à noite, dou por mim a pensar, cobre Agafia, que não tem mais nada. Ou tem aquilo que não sabemos medir.

Comments

  1. Helena Castro Moita says:

    Mas Agafia é visitada de 2 2 meses por uma caçador que lhe leva alguns alimentos e bens de primeira necessidade.
    Sempre recusou voltar ao mundo. Também teve motivos para isso pois os 3 irmão morreram do contacto com os elementos da expedição. Dois por insuficiência renal; nunca tinham comido sal, e gostaram imenso do pão, que foi uma descoberta para eles.A irmã morreu de doença pulmonar de alguma bactéria que não estava habituada Recusou ir ao hospital.

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