Negócio privado, mas despesa pública, no comboio da Ponte

António Alves

emef comboio na ponte barraqueiro fertagus

Eu explico: estas unidades foram compradas pelo Estado para a CP. Mas como o Estado queria um operador privado na Ponte sobre o Tejo, foram cedidas à privada Fertagus. Na verdade foram compradas, a preço de amigo, por um sindicato bancário que as cedeu em leasing à Fertagus.

Um bom negócio.

Bom negócio até ao momento em que elas entraram na idade de fazer a obrigatória revisão da meia vida. Coisa que fica cara. Nesta altura do campeonato ou ela é feita ou compra-se material novo.

E é aqui que a porca torce o rabo.

Nem o tal sindicato bancário nem a Fertagus estavam interessados em qualquer destas duas soluções. Vai daí, na renegociação da concessão, arranjou-se a solução perfeita: o Estado recomprou as automotoras, assumiu a responsabilidade pela sua renovação e a Fertagus continuou a usá-las a preço de amigo.

E perguntam vocês: porque raio o Estado faz isto quando tem um operador próprio e tudo lhe ficaria mais barato? Como resposta apetecia-me dizer um plebeísmo, mas dizer que temos sido governados por representantes de uma oligarquia cleptocrata não anda longe da verdade.

Para saber mais:

1. Os encargos escondidos

No relatório do Tribunal de Contas, de 2012, à Auditoria ao contrato de concessão FERTAGUS, pode-se ler na  página 24:

emef comboio na ponte barraqueiro fertagus tribunal de contas

Extracto do relatório do TdC, onde se evidencia a compra do material usado pelo Estado

Apesar de elogioso para esta PPP (ver pág. 7), o que este relatório não referiu  foi um custo escondido que a venda do material circulante traria. Tanto o Presidente do Conselho Directivo do IMTT, IP, como a Administração da Fertagus exerceram o direito de contraditório quanto a este relatório, mas, ao o fazerem, nenhum deles referiu os custos da manutenção das automotoras com quase 20 anos, a precisarem de manutenção urgente para poderem continuar a circular. Ambos se esqueceram de uma peça fundamental no negócio sob a sua responsabilidade. O resultado está à vista:

A factura dos trabalhos, no valor de 1,2 milhões de euros, será paga pelo Estado, uma vez que as Unidades Quádruplas Eléctricas são propriedade pública, estando alugadas ao operador privado. [Transportes e Negócios, 8 Agosto de 2016]

2. Os encargos “nulos” para o Estado

O mesmo relatório afirma, ainda, que a partir de 2011 “a concessão Fertagus não apresenta qualquer encargo para o Estado”.

emef comboio na ponte barraqueiro fertagus tribunal de contas 2

Total de encargos suportados pelo Estado com a concessão FERTAGUS

É lícito afirmar, como se constata, que o Tribunal de Contas avaliou incorrectamente a concessão.

3. Mais encargos escondidos

Ainda o relatório do TdC tinha acabado de fazer seis meses e já havia encargos que não tinham sido identificados.

O Estado terá que pagar à Fertagus cerca de 1,5 milhões de euros para reposição do equilíbrio financeiro da concessão ferroviária eixo norte-sul, decorrente do aumento em 53% pela Refer da taxa de utilização da infraestrutura (TUI) ferroviária.

Na proposta do Orçamento do Estado para 2013 (OE2013), o Governo refere a existência de um pedido de reposição do equilíbrio financeiro da concessão ferroviária eixo norte-sul com fundamento no aumento da TUI em 2012, que, de acordo com a Fertagus, «significou um aumento de 50% face ao valor previsto no modelo financeiro do contrato para 2012». [TVI24, 2012-10-17]

Esta forma de encargos traduziu-se num circuito de transferências de capital da Fertagus para a Refer (Estado) e, depois, do Estado para a Fertagus. Não é claro porque é que o Estado não transferiu directamente o dinheiro para a Refer, nem se este valor foi, de facto, devido.

4. Os diversos contratos do Estado com a Fertagus

  • O primeiro período da concessão (1999-2004): foi um contrato com previsões de tráfego mal estimadas, que permitia que Fertagus negociasse o contrato na totalidade, “quando o volume de tráfego não atingisse o limite mínimo da banda inferior de tráfego definida contratualmente”. Em 2001 a Fertagus iniciou a renegociação do contrato. Neste período, o comboio da ponte custou ao Estado 45.2 milhões.
  • O segundo período da concessão (2005-2010): contrato no qual se determinou um valor fixo para a procura e para os proveitos. Os encargos para o Estado neste período foram de 57.6 milhões de euros. A frequência do serviço baixou devido à inexistência de investimento em material circulante (responsabilidade que passou para o Estado). O comboio da ponte passou a dar lucro neste período.
  • O terceiro período da concessão (2011): o contrato passou a ter clausulas de salvaguarda em caso de acrescida concorrência. Como se viu, os encargos continuam a existir.

Até ao final de 2010, o Estado pagou à Fertagus um total de 102.8 milhões de euros, distribuídos entre “compensações por desequilíbrios financeiros e compensações pela prestação do serviço público”.

5. A previsão de tráfego “monumentalmente errada”

“A previsão de tráfego foi monumentalmente errada por parte da FBO, por parte dos três concorrentes e pela própria Fertagus”, afirmou, explicando que “houve erro de previsão” porque houve “ uma sobrestimação da transferência intermodal”. “Pensou-se que se íamos ter serviço de qualidade ia haver transferência maciça do modelo rodoviário para o ferroviário, o ambiente caótico que o modo rodoviário vivia à época levava a pensar nisso”. “Foi erro cometido por toda gente”, afirmou Cravinho, admitindo que se pudesse “ter sido mais prudente”. [João Cravinho, comissão parlamentar de inquérito às Parcerias público-privadas, via Jornal de Negócios, 18/09/2012]

Pelos sucessivos contratos sem salvaguarda do interesse do Estado e pelas próprias declarações do ministro então responsável pela concessão, constata-se que, desde o início, o negócio foi montado para dar prejuízo ao Estado.

 

Comments

  1. Nightwish says:

    Isso é desconversa, os privados são muito mais eficientes, não sabe? Por isso é que o preço por km é o dobro, é o custo da eficiência.

  2. Só conheço uma única concessão de um espaço público a um privado que não dá prejuízo ao Estado: a venda de bolas de berlim na praia.

    • E as bancas de venda de jornais? E as esplanadas? E o ar para a aviação? E o mar para as empresas de navegação? E as estradas para as empresas de camionagem de carga e passageiros? Cegueira ideológica por aqui “está boa e recomenda-se”!

  3. Coyote says:

    O dia em que o autor do texto tiver necessidade de ir cagar numa estação do operador público, quero ver ao que vai limpar o rabo. A não ser que imprima o texto….

    • O operador público não tem estações. Estas são da Refer/IP tal como são as estações que servem a Fertagus. E em muitas delas também se caga muito bem.

      • Coyote says:

        Informo-se primeiro e depois já pode falar. Há estações com gestão da IP, da CP e da Fertagus.

  4. Afonso Valverde says:

    É desconversa afirmar-se, sem mais, que “os privados são muito amis eficientes”. Essa eficiência ( é discutível o conceito assim aplicado) faz-se como indica o texto à custa de rendas do Estado. Assim qualquer um é eficaz a fazer lucro para si em prejuízo dos restantes – contribuintes.
    Faço um contrato para um negócio em que o número de clientes estimado por ano são 5.000. Se for abaixo deste número o Estado suporta. Lindo. Eficiência?
    Essa perpectiva de público privado já enjoa, apesar de ter consciência que muitos políticos entregam os negócios do Estado a compinchas e alguns gestores cuidam da sua vidinha a gerir a coisa pública.

    • José Gravato says:

      Mas concordará comigo no seguinte. Quando uma empresa pública tem prejuízos, paga o contribuinte.
      Quando uma empresa privada tem prejuízos, pagam os donos da empresa.
      Certo?

      • j. manuel cordeiro says:

        Vê-se. Sem ir mais longe: BES. E mesmo neste caso, quem pagou o prejuízo da Fertagus foi o Estado, graças a um contrato onde o risco ficou do lado do Estado.

        • José Gravato says:

          Arrisque o meu amigo a montar uma empresa. E se ela for à falência não tem problema. Eu, na qualidade de contribuinte vou logo salvá-lo. É limpinho! Não se preocupe.
          Mas se eu falhar ainda há o seu pai para pagar as dívidas.
          Ouça amigo, aqui para nós que ninguém nos ouve. Não há melhor empresa que ser funcionário público!

          • j. manuel cordeiro says:

            Mas isso sou eu que sou um pé rapado. Ser salvo por dinheiro públicos não é para todos. Não alinho nessa conversa anti-público e, para que conste, trabalho no privado. Se gosta tão pouco do estado, vá para o Uganda para ver como é não existir estado.

          • Pois é,o Ricardo Salgado,Oliveira e Costa,etc,que o digam,e de muitas empresas que beneficiaram de perdão fiscal e EDP com ótimas rendas são alguns exemplos.

      • Afonso Valverde says:

        Não. Se for um banco pagamos todos nós. As empresas privadas não são pelos vistos todas iguais. No caso de ser o contribuinte ele pode escolher não votar em quem nomeou os “maus gestores”, certo! Não devemos atirar todos para o exterior (outros, público, privado) muito do que está também nas nossas mão. Já disse porque não voto no PSD e Ps mesmo considerando-me um social democrata. Parte do PS e do PSD são membros da seita maçonaria que domina parte destes partidos e da comunicação social. Só não vê quer não se interessa por analisar as coisas e procurar as explicações para além da fachada que é mostrada.

      • António José Albuquerque says:

        Não é verdade. Veja o caso do BES!

      • Será que ainda não leste nada sobre contratos e parcerias PP?é coincidência que o Estado acaba sempre a pagar a esses sujeitos?claro que não,são os arranjos dos políticos vigaristas em negócio com os amigos.

  5. Martinhopm says:

    A propósito deste tema, PPP, (e acrescento eu, ´swaps’), gestão de empresas públicas vs. privadas, aconselho a leitura, para uma informação mais ampla e, como agora se diz, sustentável, dos seguintes livros da autoria do jornalista Gustavo Sampaio: «Os Privilegiados, como os políticos e ex-políticos gerem interesses, movem influências e beneficiam de direitos adquiridos»; «Os Facilitadores, como a política e os negócios se entrecruzam nas sociedades de advogados» Além destes livros, claro que há outros, mas como não os conheço não me posso pronunciar. Estes dois são amplamente elucidativos do regabofe que segue neste país à custa dos dinheiros públicos, ou seja dos impostos de todos os contribuintes. Ditosa Pátria…

  6. António José Albuquerque says:

    A minha pergunta é: – E NINGUÉM VAI PRESO ???????

  7. Aónio Lourenço says:

    Este tipo é um impostor! Ou seja, entre acreditar na boa fé do relator do relatório do TdC e ele próprio, quer que acreditemos em si, visto escrever num blogue sobejamente conhecido por ser de esquerda.

    A Fertagus paga pela utilização da infraestrutura. Logo, o estado construiu a linha mas a Fertagus paga o seu aluguer à IP, mais precisamente 4,6 milhões de euros por ano através da taxa de utilização. E também paga o aluguer do material circulante! E como qualquer empresa privada também paga impostos ao estado, 127 milhões de euros em 2017, como pode ser visto no Relatório & Contas da empresa.

    Cita-se IPSIS VERBIS o relatório do Tribunal de Contas, na página 10:

    O ano de 2010 ficou marcado pela prorrogação do contrato de concessão do serviço de transporte ferroviário de passageiros do Eixo Norte/Sul até 2019, já que as condições contratuais que tinham sido definidas, no contrato assinado em 2005, foram cumpridas.

    Agora, existe a possibilidade de o Estado resgatar a concessão em 2016, tendo ainda ficado acautelada a eventual alteração que possa ocorrer em resultado das soluções de transporte entre as margens do Tejo, incluindo o projeto de ligação ferroviária de alta velocidade entre Lisboa e Madrid.

    Note-se ainda que, a evolução do modelo contratual da concessão Fertagus, formalizado na última renegociação, em 2010, através do Acordo Modificativo ao contrato de concessão, não trouxe qualquer encargo para o sector público, tendo sido todos os riscos inerentes à exploração da concessão integralmente transferidos para a concessionária, incluindo o risco de procura.

    Assim, a partir de Janeiro de 2011, a concessionária deixou de auferir indemnizações compensatórias pagas pelo Estado.

    A própria concessionária refere que não precisa de apoios do Estado porque “tem vindo a construir ao longo de 12 anos uma imagem sólida em termos de prestação de serviços de qualidade e fiabilidade junto dos seus clientes, porque ao longo de 12 anos tem efetuado um rigoroso controlo de custos, procurando sempre e de uma forma sistemática uma maior eficiência nas suas operações, e porque num quadro de estabilidade do sistema como o que se previa aquando da prorrogação da concessão, o crescimento real de 1% no tarifário permitia simultaneamente aumentar a receita e crescer de uma forma razoável a procura, permitindo equilibrar a concessão. Porque soubemos articular o serviço ferroviário com um conjunto de serviços complementares de forma a alavancar a procura e fidelização ao sistema integrado que oferecemos.”5.

    Neste âmbito, a Fertagus referiu ainda que, em 2010, foi considerada uma das melhores empresas para trabalhar em Portugal6 tendo, em 2011, ascendido à 23ª posição, num total de 100 empresas7.

    Sobre esta matéria, o IMTT referiu que “uma das razões essenciais relaciona-se com a gestão de proximidade e permanente atenção sobre os factos envolventes ao negócio levado a cabo pela concessionária. Por outro lado, influem os seguintes fatores: (i) o modelo tarifário assumido para o período adicional de exploração, que confere flexibilidade à gestão; (ii) o facto de a concessionária ter assumido um pressuposto de aumento anual de procura de 1% até 2015 e de 0,5% para os anos seguintes; (iii) o facto de a concessionária ter salvaguardado que caso, durante o período de prorrogação, as tarifas a pagar ao gestor da infraestrutura ferroviária sofram aumentos por força de alterações extraordinárias das tarifas de serviços essenciais constante dos Diretórios de Rede, poderá refletir esse efeito, mediante autorização do concedente, correspondente à diferença verificada no(s) tarifários(s) do ano seguinte”.

    Acresce ainda que, segundo o próprio IMTT, a prorrogação do prazo de vigência do contrato, não acarretando encargos para o sector público, traduz-se num potencial de receitas para o Estado. Com efeito, os pressupostos para que ocorresse a última renegociação que prorrogou o contrato de concessão até 2019, já se encontravam estabelecidos no próprio contrato alterado em 2005.

    Assim, a renegociação só poderia ocorrer se não houvesse qualquer comparticipação financeira do Estado para todo o período da prorrogação e ainda que, a concessionária tivesse cumprido os requisitos contratuais no que concerne à manutenção da qualidade do serviço prestado.

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  1. […] A questão deste subsídio encapotado do estado a uma empresa privada já foi por mim abordada em texto anterior. Hoje a questão é […]

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