Era Lisboa e ríamos

New Portuguese Letters to the World
Imagem: Google books

A notícia da morte de Isabel Barreno e a evocação mediática do escândalo armado no regime anterior, que ficou conhecido como o caso das Três Marias, levou-me a olhar para trás uns largos anos. 

O livro, assinado por Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta, foi acusado de pornografia pelos censores oficiais quando, muito simplesmente, se tratava de dar relevo, artístico e literário, às cartas da freira Mariana Alcoforado que, num convento de Beja, se enamorou dum oficial francês, amigo e companheiro de armas de seu irmão. Como de costume, a coisa meteu interrogatórios policiais, tribunais e uma razoável tribuna de acusações por parte de todos os correios da manhã de que o governo fazia gato-sapato. O assunto, porque a lentidão está no ADN da justiça portuguesa, só viria a ser concluído por uma absolvição depois de 1974.

Antes tinha havido outro livro que tinha feito urticária  aos dinossauros do regime: Antologia da Poesia Erótica, compilada por Natália Correia. Foi o ensaio geral do Dia de Juízo. E o livro, na maior parte escondido nas livrarias, esgotou-se logo. Num país ensinado a acreditar que o Papa não faz chichi e a Rainha de Inglaterra não se despe para tomar banho, podem imaginar o que foi.  Mas, creio, os mais novos terão interesse em conhecer os lados cómicos desta ditadura.

Luís Pacheco, que escrevia bem como nenhum e tinha uma cultura vastíssima, era a provocação diária ao regime.  Alto, magro, de óculos de muitas dioptrias, voz mansa, sempre bêbado, com vários filhos de várias mulheres, tinha voltado as costas ao que era considerado bem e bonito. Era um marginal. Fazia traduções, editava livros, fazia crítica literária, e andava sempre sem dinheiro.  Valiam os amigos. Sempre que era necessário, desaguava no meu gabinete e prantava um saco de plástico carregado de livros na secretária – os livros que os autores lhe enviavam para que fizesse as críticas.  E ficava a olhar para mim, muito sério, enquanto me dizia: “Isso que aí está é tudo uma merda, mas eu vendo-te por 20 paus”. Eu queria dar mais, por achar justo, mas ele tinha horror ao muito dinheiro, sentia-se perdido. A tabela do Luís Pacheco eram os 20 escudos.  Desconversávamos um bocado, umas vezes ganhava ele, outras ganhava eu.  Foi assim que fiquei com livros, de afamados autores, com dedicatória e tudo, recheados de anotações do crítico muito finas como “esta gaja é doida”, “olhó melro, o que tu queres sei eu” e por aí fora.  Uma ocasião em que me foi fornecer de livros com valiosas anotações, contou-me que a Natália Correia andava a organizar uma antologia de poesia erótica e o tinha intimado a escrever uma pois que, sendo um traste de vida depravada, devia ter disso às resmas. Estava escandalizado. E garantiu-me que ia “lixar a Natália”, estendendo-me um papel manuscrito que li. Era um poema que começava assim:  “Acordei num triste dia / Com uns cornos bem bonitos / E perguntei à Maria / Porque me pôs os palitos”. E depois ia por ali fora, numa toada que Bocage havia de gostar, mas que metia Angola e a Guerra Colonial. Ri-me e esqueci.  Dali a tempos a antologia era publicada, lá vinha o poema do  Pacheco. E de repente, estava tudo no banco dos réus.

Num belo meio dia soalheiro, a tomar café na Brasileira, o grupo resolveu almoçar no Restaurante 13, do Bairro Alto. Lembro-me que Eunice Muñoz também ia. Estávamos no final do almoço quando apareceu Luís Pacheco.  Todos o chamámos, mas ele não parava de falar com a empregada de mesa.  Finalmente, sentou-se. Quando percebeu que íamos entrar na sobremesa, levantou-se e deu as ordens: “Oh menina, traga pudins, traga bolos, traga vinho do Porto que isto hoje é uma orgia”. Nós ríamos. A Eunice não parava de rir.  Depois lá conseguimos perguntar o que queria dizer aquilo. O Luís explicou: tinha passado a manhã no Tribunal da Boa Hora por causa do raio da antologia e quando esperava ser preso, os juízes informaram que ele tinha uma multa e custas a pagar mas que, tendo o tribunal sido informado que ele era “economicamente débil”, o processo era arquivado. O Luís saiu contente e com fome. Lembrou-se de ir à delegação da revista angolana NOTICIA, onde pontificava a grande jornalista que foi Edite Soeiro, a ver se ela lhe arranjava 20 escuditos. E a Edite, sempre com aquele ar sereno, entregou-lhe um envelope recheado de notas. Era o pagamento de trabalhos feitos para a revista. Ficou aflito com tanto dinheiro e resolveu estourar tudo.  Rimos que nem doidos.

Os mais novos talvez estranhem este gosto pelo riso que nos davam as pequenas coisas. É que o regime, além de criminoso, era muito chato. E nós éramos novos.

 

Comments

  1. Afonso Valverde says:

    Já li Luis Pacheco. Gosto muito de Comunidade.
    Vi entrevistas dele ainda com vida. Uma delas já num lar.
    Era um Homem muito Humano. É preciso mais Homens assim.
    A parte das atribulações, que outros atribuem, com os filhos eram o resultado do seu comportamento pouco dado e convenções e do meio social que não tolerava o seu modo de vida e, sobretudo, a sua irreverência.

    • JgMenos says:

      Os filhos eram resultado do seu comportamento?
      Tempos extraordinários aqueles!

      • Afonso Valverde says:

        Ó senhor tenha alguma prudência. Aceito que a frase não está bem, mas não é caso para tanto.Vossa Mercê senhor JgMenos saberá de tudo e de todos…
        Sim, Luis Pacheco teve uma vida pessoal atribulada. É conhecido esse facto.
        Mas era um grande escritor e um bom Homem. Não tinha, muitas vezes, paciência para inutilidades dos mediocres.

  2. Agustina nunca teve a mesma sorte. Teria hoje um Nobel, quem sabe!

  3. fleitao says:

    Xico: concordo consigo. Portugal tem uma grande dívida com Agustina e Miguel Torga. E não estão em causa governos, mas as malditas capelinhas com os seus arautos na comunicação social. Um dia chegará em que se há-de escalpelizar este tipo de corrupção.

  4. Belos tempos !!!

  5. Fernanda, muito obrigada por esta e pelas outras histórias. É um prazer lê-la.

  6. fleitao says:

    Muito obrigada pela sua atenção, Carla. Quando se é velho, que ao menos as nossas lembranças sirvam para alguma coisa.

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