Tourada turco-alemã

erdogan merkel

Cem Özdemir, presidente do partido alemão “Os Verdes”, foi, em 1994, o primeiro deputado de origem turca com assento no parlamento federal. Uma das suas bandeiras, o reconhecimento como genocídio dos massacres aos arménios, cometidos há mais de um século pelo Império Otomano, tornou-o um alvo do presidente Erdogan. Já no seu discurso em Maio de 2014, em Colónia, Erdogan se lhe referiu como “suposto turco” e declarou que não queria voltar a vê-lo no seu país. E desde que, no passado dia 2 de Junho, o parlamento alemão aprovou por grande maioria uma resolução que reconhece o genocídio ao povo arménio, Özdemir – bem como outros 10 deputados de origem turca – passou a receber ameaças, até de morte, tendo sido colocado sob protecção policial e fortemente desaconselhado de se deslocar à Turquia. Esta resolução tornou-se um espinho cravado na garganta de Erdoğan, que logo desancou verbalmente estes deputados como porta-vozes do PKK (o proibido Partido dos Trabalhadores do Curdistão) que, tal como os terroristas, teriam sangue degenerado, ou falta de carácter – duas opções para traduzir as palavras utilizadas por Erdogan.

O debate parlamentar tinha sido aberto com a declaração explícita de que não se tratava de culpar o actual governo turco, mas sim de, através do reconhecimento de um facto doloroso, possibilitar um primeiro passo para abrir a porta à reconciliação entre turcos e arménios. E, ainda, de reconhecer a conivência do Império Alemão que, como aliado do Império Otomano durante a primeira guerra mundial, sabendo que os massacres iriam acontecer, nada fez para os impedir. “O império Alemão é co-responsável pelos acontecimentos” é o excerto da resolução aprovada pelo Bundestag sobre a Arménia. Mas Erdogan não é homem para nuances. Tal como tinha feito há cinco anos em relação à França e, no ano passado, ao Vaticano – após as declarações do Papa Francisco, que se referiu a este massacre como “o primeiro genocídio do século XX“- Erdogan retirou de imediato o embaixador turco em Berlim. E mais, declarou que os deputados do Bundestag estavam impedidos de visitar as tropas do exército alemão, estacionadas em Incirlik para combater os terroristas do estado islâmico, até que o governo se demarcasse da resolução. Cumprindo a ameaça, recusou a entrada a um secretário de estado e a vários deputados que tentaram visitar os soldados alemães no terreno, como parte dos procedimentos de atribuição de mandato para estacionamento de soldados.  O actual mandato termina no fim do ano e o SPD já declarou que, a manter-se a situação, votaria no Bundestag contra o prolongamento.

Foi neste contexto que, após meses de pressão pelo governo de Ancara, rebentou ontem a notícia do Spiegel de que o governo alemão iria publicamente distanciar-se da resolução sobre a Arménia. Seguiu-se a declaração, pelo porta-voz do governo, de que a resolução do parlamento não é “juridicamente vinculativa”. E explicações posteriores titulando de falsa a notícia do Spiegel, pois “não há demarcação nenhuma da resolução (…); a resolução foi e é correcta” (Peter Tauber, Secretário-geral do CDU). De facto, anunciar que a resolução não é “juridicamente vinculativa“, significa apenas dizer que não é uma lei, ou, concretamente, que dela não resulta a exigência de reparações; o que é uma banalidade, tratando-se de uma resolução. Essa banalidade permitiu ao jornal turco „Star“ anunciar, ainda no mesmo dia, “A Alemanha retrocede”, o que parece ser suficiente para satisfazer a virilidade sanguinária de Erdogan.

Fez bem Angela Merkel, lidando a fera com uma banalidade sem consequências. Enfrentar Erdogan pela ditadura em que está a transformar a Turquia, deve ser em primeira linha tarefa a nível da UE, ao mesmo tempo que se encontrem alternativas para diminuir a dependência em relação à Turquia na questão dos refugiados. Mas Merkel vai pagar caro por isto e a nível interno a sua popularidade está mais baixa do que nunca. Entretanto, Erdogan tem já uma nova razão para se enfurecer com o governo alemão: sob forte protecção policial teve lugar, hoje mesmo, uma bela manifestação de curdos, onde 30.000 pessoas criticaram “o procedimento ditatorial” de Erdogan e o ataque do exército turco às milícias curdas que lutam na Síria contra o estado islâmico. O sultão do Bósforo já estará de pelo eriçado a congeminar nova retaliação para este ataque certeiro ao seu peito despeitado.

Comments

  1. Atento says:

    Não tenho mais a comentar: Parece-me um excelente artigo…

  2. JgMenos says:

    Temos uma Besta em formação a norte da Síria.

  3. Martinhopm says:

    Erdogan pode dar-se ares de fanfarrão.Tem a UE na mão, pois é ele o árbitro do(s) conflito(s) na região. De acordo com as suas conveniências, ora apoia o Daesh, ora parece combatê-lo. E o que é que faz a UE? Já para não falar da guerra de extermínio dos curdos! E que dizer daquele bem ensaiado golpe de estado? Foi soprado por quem? Com que intenções?

  4. Martinhopm says:

    Embora sem a conhecer, Ana Moreno, quero dar-lhe os parabéns por este excelente escrito.

    • Ana Moreno says:

      Obrigada Martinhopm, fico contente. E já agora, é como refere acima, o fanfarrão “tem a UE na mão”.

  5. Bem haja quem tem os olhos abertos e se apercebe destas coisas !!!

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