Errar não é de direita ou de esquerda e as ordálias da actualidade

Este mal menor que nos governa, com o seu jogo de cintura, algo tem feito por exorcizar o clima de expiação que nos impuseram a pretexto da chantagem financeira de fomos alvo. Mas, ó esquerdalho, olha que dívida atinge valores insuportáveis e o crescimento é endémico, parece-me ouvir do lado dos Cavaleiros do Apocalipse, como se esta não fosse a letra de um fado tocado diariamente nos tempos dos adoradores da troika.

Apesar deste ar menos pesado, há erros que se cometem e que não podem passar em branco. Sendo certo que, para a oposição, tudo é um erro, pelo simples facto de não serem governo, a intenção do governo se preparar para meter o fisco a bisbilhotar as contas bancárias dos portugueses é um sinal muito preocupante e um erro a combater. Foi por prepotências destas, como o projecto das matrículas automóveis com chip, para citar um exemplo do mesmo campo do ataque à privacidade, que o governo de Sócrates acabou odiado.  Esta medida é um acto de oportunismo, em que uma directiva europeia que obriga os estados membros a reportarem saldos bancários dos cidadãos estrangeiros a viver no país, quando superiores a 50 mil euros, está a ser alargada, por decisão do governo, a todos os portugueses. E para quê? Diz o governo que é para prevenir a evasão fiscal, como se não fosse actualmente possível levantar o sigilo bancário quando exista suspeita de crime fiscal. A aprovação desta lei será mais um passo no sistema de culpado até prova em contrário, o regime de excepção em que a máquina fiscal se vai transformando.

ordália

Prova de flutuação (Imagem: Northern Kentucky University)

Costa defendeu esta medida afirmando que “quem cumprir as suas obrigações nada tem a temer ou a recear“. Em vez de nos precipitarmos na condenação imediata deste raciocínio, que transporta as ordálias para os dias de hoje, olhemos para o potencial deste pensamento visionário na resolução dos problemas da nossa justiça. Para quê longos processos e presunção da inocência se podemos recorrer ao juízo de Deus? Em vez destes, optemos por uma justiça rápida e eficaz pelas provações do fogo e do banho gelado. Na primeira, o réu deverá dar alguns passos com ferro em brasa nas mãos, decidindo-se a culpa ou inocência pelo estado das feridas ao fim de três dias. Na segunda prova, muito usada antigamente para desmascarar as bruxas, a pessoa será mergulhada num lago gelado, ou pendurada numa câmara frigorífica caso seja Verão, já que a justiça não pode ser sazonal, sendo o acusado declarado inocente se não sair a tremer de frio da prova. Outras provações, como o duelo, a cruz e as águas da amargura poderão ser usadas quando as especificidades dos processos assim o justifiquem. Pelo postulado de Costa, quem for inocente nada terá a temer ou a recear, bastando-lhe a intervenção divina na resolução da prova a que o acusado se submeta.

Brincadeira à parte, esta forma de justificar decisões e este tipo de medidas devem ser repudiadas. Costa já ensaiou uma saída à Pilatos, empurrando a decisão para Marcelo. Aventou-se que o diploma poderá cair caso o Presidente da República vete a lei. Mas esta nem devia ter avançado. Uma oposição que actua como o Pedro que anuncia o lobo inexistente, falha quando é, de facto, necessário parar medidas erradas.

Os erros precisam de ser combatidos, mesmo que isso resulte no engrossar das vozes grossas quando estão oposição e que se tornam dóceis ao passarem ao poder, pois errar não é de esquerda nem de direita, é humano.

 

Comments

  1. Luís Lavoura says:

    Confesso que não vejo o que há de errado em o fisco ver, uma vez por ano, quanto dinheiro há na minha conta bancária.
    Note-se que isso mesmo é feito pelo fisco em pelo menos alguns outros países europeus, por exemplo a Holanda.
    Não faz qualquer sentido que o fisco possa todos os anos saber quanto dinheiro é que um português tem em contas bancárias em todos os países da Europa menos num, precisamente aquele no qual reside. Isso quereria dizer que eu não podia esconder o meu dinheiro numa conta na Suíça, mas podia escondê-lo numa conta em Portugal!

  2. Nightwish says:

    Paciência, não declaram a bem, declaram a mal, é a vida. É de longe a violação de privacidade por parte estado que menos me preocupa.

    • anónima says:

      “É de longe a violação de privacidade por parte estado que menos me preocupa.”
      Concordo. O Bem Comum prevalece sempre!!

    • Mas há trabalhador por conta de outrem que tenha a menor hipótese de fuga ao fisco? Ai, santa paciência. Por outro lado quem tem capacidade de fugir ao fisco nem sequer é apanhado por esta medida.

      É uma boa altura para lembrar Brecht. Primeiro bisbilhotaram os que tinham 50 mil euros,
      Mas eu não me importei
      Porque não era nada comigo.

  3. João says:

    “O quê? Precisa de um subsídio para sobreviver? Faça de conta que está num interrogatório da PIDE e desenbuche tudo, homem. O património imobiliário, mobiliário, a morada, os atuais rendimentos, o cartão de cidadão, o tipo de sangue, ah, e uma selfie com a famelga toda para confirmar o nº de dependentes”

    “Meu caro sr, por quem é? Tem mais de 50 mil €uros na conta? Então não é preciso mais nada. É de certeza pessoa de bem, e peço desculpa se sequer ousei perguntar o nome de vossa excelência”

    Como disse bem o Daniel Oliveira, há uma classe de privilegiados, a maioria dos quais pouco honestos no que toca a cumprir os deveres para com o estado (ou seja, para com o resto do contribuintes), que andam a tentar amedrontar todos os outros de modo a que esses, não afetados, sirvam de escudos humanos contra as medidas do governo.
    A falta de argumentos é tal que o “argumento” Sócrates já voltou a fazer parte das conversas da treta todas.

    Está decidido, hoje não voto no Aventar para melhor blog do ano! Amanhã logo se vê… vou presumir a vossa inocência até lá…

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