Elena Ferrante: as pessoas têm o direito de saber?

transferir-3Elena Ferrante é autora de uma tetralogia que anda a entusiasmar leitores do mundo inteiro. O nome da escritora é, na realidade, um pseudónimo. Tendo manifestado a vontade de manter o anonimato, respondeu sempre por correio electrónico às entrevistas que concedeu.

Recentemente, Claudio Gatti, um jornalista italiano, terá desvelado a identidade de Ferrante. Sabendo-se que isso vai contra a vontade de autora, parece-me que esta investigação, na melhor das hipóteses, pisa uma fronteira ética. Se um escritor quiser ser apenas um nome ou um narrador, está no seu direito.

Claudio Gatti, no entanto, resolveu complementar a sua descoberta com argumentos a favor da sua investigação. A ser verdade o que se lê no Diário de Notícias, oscilam entre o oco e o disparatado.

Em primeiro lugar, recorre ao estafado as pessoas têm o direito de saber. Não é sequer invulgar ouvir jornalistas de rádio e de televisão usarem a pergunta “O público não tem direito a saber?” Sendo certo que um jornalista presta (ou deveria prestar) um serviço público, a verdade é que esta pergunta é apenas sensacionalista e/ou provocatória, porque a realidade é que há assuntos que as pessoas não têm o direito de saber, especialmente a partir do momento em que alguém não quer que se saiba.

Seguidamente, Gatti espalha-se ao comprido, quando se revolta contra o facto de que, no último livro, Frantumaglia, apresentado como autobiográfico, há “inverdades”. Gatti comenta: “Enquanto jornalista, não gosto de mentiras.” Parece-me uma declaração estranha, tendo em conta que escreve num jornal de economia, uma linguagem que pretende passar por ciência exacta.

Se uma escritora que quer permanecer anónima anuncia um livro autobiográfico, a probabilidade de contar toda a verdade talvez seja ínfima. Por outro lado, em literatura ou a propósito de literatura, o que é isso do autobiográfico e quando é que se é autobiográfico? Quem não gostar de mentiras, não deveria escrever sobre literatura. Melhor: quem pensa que mentira e verdade são as únicas categorias que podem definir os enunciados, não deveria escrever sobre literatura.

Li, regalado, A Amiga Genial. Passo bem sem conhecer pessoalmente Elena Ferrante. Ao mesmo tempo, fico com a impressão de que a conheço pessoalmente. Enquanto pessoa, adoro mentiras.

Comments

  1. Rui Naldinho says:

    No jornalismo há muito “Saraiva”. E não é só em Portugal. Os paparazzi são um bom exemplo.
    Gente que nunca se conseguiu afirmar na arte de produzir uma peça jornalística isenta, tecnicamentecbem bem elaborada, seja uma reportagem, um estudo analítico, uma entrevista, uma foto, um vídeo, um artigo de opinião.
    Pessoas que por incompetência, por incapacidade emocional de gerir os acontecimentos que a rodeiam, arregimentados, e, acima de tudo por falta de vergonha, vêm furos jornalísticos em todas as ações do domínio privado de figuras públicas, ou realidades concretas que não deviam ser do conhecimento público sob a forma de espetáculo, tais como transmitir em direto bombardeamentos militares sobre populações, homicídios, violações,…
    Com a diminuição cada vez maior de leitores de jornais e revistas, e, a diminuição de consumidores da informação produzida nos audiovisuais mais conhecidos, opta-se pelo voyeurismo como forma de angariar leitores e audiências.
    Qualquer dia, as redes sociais que tantos engulhos causam a certas elites, nalguns casos com razão, acabarão por se tornar mais fiáveis do que os meios de comunicação social tradicionais.

  2. A propósito de “mentira e verdade”, o romancista Javier Marías, de quem gosto muito, costuma recordar que “inventar” tem origem no latino “invenire”, que – como sabes bem melhor do que eu! – significa descobrir, encontrar. Ou não fosse, muitas vezes, a invenção uma forma de estar mais próximo da verdade.

  3. Ricardo Ferreira Pinto says:

    Parece-me que é normal querer saber quem é o verdadeiro autor de uma determinada obra. Não é propriamente uma questão de privacidade ou de vida íntima da pessoa.
    Noutro registo, lembro-me aqui há uns anos de «O Meu Pipi», cujo autor nunca se chegou a descobrir.
    Claro que a autora também tem o direito de querer que não se saiba. Por azar dela, aparentemente não o conseguiu.

    • Rui Naldinho says:

      Durante muitos anos o Manuel Tiago pertencia ao domínio de uma minoria muito restrita de pessoas.

  4. fleitao says:

    Também o jornalismo, em Portugal e no mundo, está invadido por “saraivas”, isto é, medíocres que precisam de recorrer à coscuvilhice para terem visibilidade. Elena Ferrante está acima disto tudo e pode, perfeitamente, pôr o garotão na ordem.

  5. Pedro says:

    Pronto, descobriu-se a identidade de quem escreve os tais livros. Posso agora perguntar porque está tanta gente tããão indignada com esta revelação? Isto tudo não é um bocadinho ridículo?

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